Autor: Cristiano Enrique de Brum1
1Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
O presente texto faz parte da coletânea “Sete Males”: Histórias das Doenças, Epidemias e Pandemias no Brasil, organizada por Eduardo Cristiano Hass da Silva, vinculada à Rede Análise COVID – 19.
A “Gripe Espanhola” que nos anos de 1918 e 1919 causou muitas mortes em vários lugares do Brasil, continuou circulando no país por muito tempo. O influenzavirus H1N1 persistiu se modificando entre nós e causando outras epidemias no período contemporâneo. A “gripe A” que atingiu Brasil em 2009 e 2010, parente genética da gripe de 1918, não fora tão mortal, mas deixou vários questionamentos. Entre eles os mais importantes: os avanços biomédicos e científicos conseguirão reprimir completamente as epidemias em nossa época? As epidemias podem se repetir? E por que as epidemias continuam existindo? Para responder essas perguntas vamos recorrer a dois personagens importantes para a história da saúde: George Rosen e Michel Foucault.
Em um de seus textos clássicos, chamado O Nascimento da Clínica, Michel Foucault responde sobre a reincidência das enfermidades no tempo histórico: “a doença específica sempre se repete mais ou menos, a epidemia nunca inteiramente” (Foucault, 1977, p. 26). Isso quer dizer que mesmo que a doenças tenham uma nosologia específica ou vetor associado a ela, a epidemia necessita de outros fatores mais amplos para tecer “em todos os doentes uma trama comum” (ibid.).
George Rosen (1979), ao estudar a epidemia de tifo e outras doenças nos Estados Unidos, conduziu uma investigação que o fez chegar a uma conclusão semelhante a de Foucault: a epidemia era mais do que somente a soma de casos individuais de uma doença específica; para existir a epidemia precisava de outras condições maiores do que a correspondente a vida individualizada. Era preciso analisar a vida do coletivo: “Se a doença é uma expressão de vida individual sob condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbios em maior escala da vida da massa” (Rosen, 1979). Para Rosen (1979), as epidemias seriam uma espécie de termômetro da sociedade: a epidemia revelava os problemas, os desajustamentos sociais, as carências humanas. “As epidemias não apontarão sempre para as deficiências da sociedade? Pode-se apontar como causas as condições atmosféricas, as mudanças cósmicas gerais e coisas parecidas, mas em si e por si esses problemas nunca causam epidemias. Só podem produzi-las onde devido a condições sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo em uma situação anormal” (Rosen, 1979).
Respondendo as nossas perguntas: continuarão existindo epidemias em uma sociedade tão avançada do ponto de vista científico e médico? Sim. Enquanto, a sociedade brasileira continuar ampliando a desigualdade social através de modelos econômicos excludentes as epidemias continuarão surgindo. Nunca iguais, sempre renovadas, modificadas, pois as sociedades também se modificam. Logo, mesmo com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde brasileiro no pós-Constituição de 1988, as epidemias seguiram se alastrando: a cólera (d.1990), a H1N1 (2009-2010), a Dengue e a Febre do Chikungunya (última década).
Se em 1918, o brasileiro Lima Barreto dizia, no meio da pandemia de “Hespanhola” que “o problema, conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de natureza econômica e social” (Lima Barreto, 1995, p. 29), pois faltava ao povo alimentação para fortalecer a saúde, vestuário para cobrir o corpo e calçá-lo e moradia em boas condições, podemos inferir que o mesmo continua a acontecer nos dias de hoje.
Referências:
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Problema vital. In: LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1995.
ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.