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Linfócitos T se “lembram” do contato anterior que tiveram com os parentes do novo coronavírus – SARS-CoV-2

09.09.2020

Por: Mell

Autora: Rute Maria Gonçalves-de-Andrade (@rutemga2) 

Revisão: Marcelo A. S. Bragatte (@marcelobragatte), Melissa M. Markoski (@melmarkoski)

Imagem: Eletromicrografia de varredura de um linfócito T (célula T) do sistema imunológico de um doador saudável. Foto: National Institute of Allergy and Infectious Diseases/NIH 

Por meio deste texto, divulgamos os resultados da pesquisa sobre o importante papel dos linfócitos T na imunidade adquirida contra os vírus do gênero Betacoronavirus contidos no artigo científico: SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls publicado na Revista Científica Nature https://doi.org/10.1038/s41586-020-2550-z) [1]

Resumo: A imunidade adquirida contra o SARS-CoV-2  (novo coronavírus), em especial a produzida pelos linfócitos T, é ponto chave para entender a variedade de quadros nosológicos, possíveis reinfecções e tratamentos eficazes, incluindo o desenho de vacinas promissoras. Infecções prévias com vírus filogeneticamente próximos ao novo coronavírus promovem imunidade robusta contra ele, a partir das células T que mantêm a “lembrança” das sequências das proteínas compartilhadas pelos Betacoronavirus.

Como já bem estabelecido, o novo coronavírus – SARS-CoV-2 – é o agente de uma nova Síndrome Respiratória Aguda Grave denominada, de forma abreviada, COVID-19 que, pelo fato de ser uma doença disseminada entre pessoas no mundo todo, levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar a COVID-19 como Pandemia em 11 de Março do corrente ano. 

A infecção por este vírus é caracterizada por uma gama de manifestações clínicas que variam desde quadros sem sintomas àqueles com sintomas leves, moderados e severos. Nos casos severos os pacientes apresentam, principalmente, uma pneumonia grave acompanhada de síndrome respiratória aguda e por outras manifestações, as quais levaram a atribuir à COVID-19 a categoria de doença sistêmica.

As diferentes formas de expressão patológica da COVID-19, em humanos, estão relacionadas a fatores como carga viral adquirida, “background” genético (conjunto de genes que compõem o genoma do indivíduo) dos pacientes e a presença de comorbidades (doenças pré-existentes). Além disto, a imunidade adaptativa, conferida pelo contato com outros vírus, filogeneticamente, próximos ao SARS-CoV-2, ou com outros microrganismos, pode reduzir a severidade de sintomas ou aumentar a gravidade da doença.

O  SARS-CoV-2 é um vírus da Família Coronaviridae, a qual agrupa vírus considerados grandes em sua dimensão, constituídos por cadeia de RNA que infectam muitas espécies animais. As espécies de vírus de Coronaviridae estão agrupadas em quatro gêneros, Alphacoronavirus, Betacoronavirus, Deltacoronavirus e Gammacoronavirus. Entre as espécies de Betacoronavirus, além do SARS-CoV-2, seis são conhecidas por infectar humanos. Quatro deles (OC43, HKU1, 229E e NL63) circulam em nível endêmico, e causam o resfriado comum, enquanto o SARS-CoV (SARS-CoV-1) e o MERS-CoV já foram agentes de epidemias de afecções do trato respiratório de etiologia grave [2]. 

 Em pessoas infectadas pelos coronavírus são geradas respostas imunes, como produção de anticorpos e ação de células de defesa, como os  linfócitos T. Para este grupo de vírus, os níveis de anticorpos específicos parecem diminuir mais rapidamente – abaixo do limite de detecção em 2 a 3 anos – do que a imunidade conferida pelas células T. A memória específica produzida por estas células é mais duradoura e, dependendo do agente infeccioso, pode ser detectável por até 11 anos [3]. 

Pelo fato de partes das sequências das proteínas estrutural e não-estrutural dos Coronaviridae serem altamente conservadas (por exemplo, os vírus SARS-CoV-2, SARS-CoV e bat-SL-CoVZXC2112 compartilham 100% de identidade na sequência da proteína NSP7 e 99% na da proteína NSP3), os autores investigaram se há reatividade cruzada da resposta das células T de indivíduos que se recuperaram da SARS comparando-as com a resposta de indivíduos que se recuperaram da COVID-19 e também com a de indivíduos que não foram contaminados por nenhum Coronaviridae e que também não tiveram nenhum contato com pacientes da COVID-19. Uma síntese destas abordagens segue abaixo.

Avaliação das células T com imunidade específica para o SARS-CoV-2 em pacientes recuperados da COVID -19. As células T específicas para o SARS-CoV-2 de pacientes em recuperação da da COVID-19 foram caracterizadas e, a imunidade resultante, inferida a partir de estudos desenvolvidos com pacientes recuperados de SARS e MERS. Para esta abordagem, os autores coletaram o sangue periférico de 36 pacientes recuperados da COVID-19 e que manifestaram sintomas com severidade média ou grave e avaliaram a resposta mediada pelas células T contra a proteína estrutural do nucleocapsídeo (N), as não estruturais NSP7, NSP13 e o gene ORF1 do proteoma do novo coronavírus. Características dos pacientes como local de residência, etnia, idade, sexo e parâmetros virais foram também registradas. A proteína N foi a escolhida por ser uma das mais abundantemente produzidas e, como já referido, por compartilhar alto grau de similaridade entre os Betacoronavirus. Já as proteínas  NSP7 e NSP13 foram analisadas devido à sua homologia total entre SARS-CoV-1,  SARS-CoV-2 e outros Betacoronavirus presentes em outros animais e porque são constitutivas do gene ORF1 que codifica a poliproteína replicase-transcriptase do vírus. Esta poliproteína é a primeira a ser traduzida após a infecção com coronavírus e é essencial para a transcrição subsequente do RNA genômico e subgenômico que codificam as proteínas estruturais.O sangue coletado dos participantes do estudo foi incubado com “pools” de diferentes peptídeos dos vírus em estudo. 

Resumidamente, para esta primeira etapa do experimento, os pesquisadores observaram que todos os indivíduos convalescentes da COVID-19 analisados desenvolveram células T (CD4 e CD8) capazes de reconhecer as mesmas sequências virais que os pacientes recuperados da SARS (reconheceram várias regiões das proteínas N), sugerindo então que a infecção prévia por SARS-CoV pode induzir respostas cruzadas contra o SARS-CoV-2 e assim, conferir proteção. 

Avaliação das células T com imunidade específica para o SARS-Cov-2 em pacientes recuperados da SARS. O controle da pandemia da COVID-19 e o desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus pressupõe entender se a imunidade adquirida será de longa duração. Já foi demonstrado que pacientes que se recuperaram de SARS apresentaram células T específicas para epítopos de diferentes proteínas dos SARS-CoV e que persistem por 11 anos. Em vista desta descoberta, para esta fase do estudo, os autores utilizaram células do sangue de pacientes que se recuperaram de SARS para testar se ainda haviam células reativas ao SARS-CoV-1. Os experimentos conduzidos revelaram que 17 anos após a infecção por esse vírus a resposta imune das células T ainda estava presente. Para verificar se esta resposta aconteceria também na presença dos peptídeos do SARS-CoV-2, os pesquisadores utilizaram sangue de 23 doadores curados da Síndrome Respiratória Aguda Grave (epidemia ocorrida ao final de 2002 na China) e encontraram reatividade cruzada robusta exibida pelas célula T frente às proteínas do nucleocapsídeo do novo coronavírus.  

Avaliação das células T com imunidade específica para o SARS-Cov-2 em pacientes que não tiveram contato com SARS-CoV e SARS-CoV 2.  Para explorar a possibilidade de pessoas que não tiveram contato e não desenvolveram SARS ou COVID-19 apresentarem células T com imunidade específica para o SARS-CoV-2, foram testadas a reatividade destas células frente a peptídeos da proteína estrutural N, e das não estruturais NSP7 e NSP13 a partir de sangue de 37 indivíduos que não foram expostos aos SARS-CoV-1 ou 2. Vinte e seis eram de amostras coletadas antes de Julho de 2019, e 11 de indivíduos sem anticorpos para ambos os vírus. Já está conhecido que algumas espécies de coronavírus, como OC43, HKU1, NL63 e 229E, que causam resfriado comum em humanos, compartilham, em diferentes graus, sequências homólogas de aminoácidos com o novo coronavírus. Estudos recentes demonstraram a presença de reatividade cruzada de células T (CD4) contra, principalmente, a proteína spike do novo coronavírus em indivíduos que não foram expostos a ele [4]. No presente estudo foi detectada resposta específica de células T (interferon gama) contra o SARS-CoV-2 em 19 dos 37 indivíduos avaliados. As células T específicas para o SARS-CoV-2 destes indivíduos (não infectados) exibiram um padrão diferente de imunodominância reconhecendo as proteínas N, NSP7,  e NSP13. O reconhecimento da NSP7 nestes indivíduos indica o reconhecimento, pelas células T, de fragmentos de proteínas que são conservadas entre os Betacoronavirus de animais, mas que apresentam um menor grau de homologia com os coronavírus associados aos resfriados comuns.É importante observar que a  infecção por diferentes espécies de Betacoronavirus induz imunidade multi-específica e de longa duração conferida pelas células T contra a proteína N destes vírus. 

Não está claro porque células T com respostas dirigidas às proteínas estruturais – NSP7 e NSP13 – são detectadas mais abundantemente em indivíduos não expostos aos SARS-CoV-1 e 2  do que naqueles que se recuperaram de SARS ou COVID-19.  Embora ainda não estejam bem esclarecidos, estes dados estão em concordância com estudos prévios que mostraram a presença de células T com imunidade para o gene ORF1, preferencialmente em indivíduos não expostos ao novo coronavírus e às células T com imunidade para as proteínas estruturais, preferencialmente, em pacientes recuperados de ambas as doenças. 

O gene ORF1 contém domínios que são altamente conservados entre os diferentes coronavírus. A presença destes microrganismos em diferentes espécies animais pode resultar em contato periódico do homem com eles, o que possibilita a indução de respostas das células T ao gene ORF1 que estarão hábeis a reagir contra o novo coronavírus. As células T de pessoas sem contato com SARS-CoV-2 reconhecem o gene ORF1 que codifica proteínas produzidas, em células infectadas por coronavírus, que são necessárias à formação do complexo replicase-transcriptase viral, essencial à transcrição subsequente do genoma viral. Assim, é possível levantar a hipótese de que as células T específicas para ORF1 podem ser capazes de abortar a produção viral por lise de células infectadas com SARS-CoV-2 antes da formação de vírions maduros. Por outro lado, em pacientes com COVID-19 e SARS, a proteína N – que é abundantemente produzida em células que secretam vírions maduros – deveria impulsionar, preferencialmente, células T específicas para esta proteína.  

Diante dos resultados, os autores reafirmaram a importância de se avaliar, minuciosamente, na população, como a distribuição, a frequência e a capacidade de proteção de células T com imunidade pré-existente para a  proteína N e para o gene ORF1 dos Betacoronavirus afeta a suscetibilidade para desenvolver a COVID-19 em diferentes graus de severidade.  Consideram ainda, que estes estudos são relevantes para o manejo eficiente da pandemia.

Referências Bibliográficas

[1] Le Bert, N., Tan, A.T., Kunasegaran, K. et al. SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls. Nature 584, 457–462 (2020). https://doi.org/10.1038/s41586-020-2550-z

[2]  Cui, J., Li, F. & Shi, Z. Origin and evolution of pathogenic coronaviruses. Nat Rev Microbiol 17, 181–192 (2019). https://doi.org/10.1038/s41579-018-0118-9

[3] Ng, O.W. et al. Memory T cell responses targeting the SARS coronavirus persist up to 11 years post-infection. Vaccine 34, 2008–2014 (2016). https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2016.02.063

[4] Grifoni, A. et al. Targets of T cell responses to SARS-CoV-2 coronavirus in humans with COVID-19 disease and unexposed individuals. Cell 181, 1489–1501 (2020). https://doi.org/10.1016/j.cell.2020.05.015

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