Fonte da imagem: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52444332
Ah! O combate à desinformação! Esse triste mas necessário capítulo da divulgação científica acaba sempre vindo à tona, seja com matérias não tão bem escritas ou mesmo divulgação tendenciosa de informações inúteis para a população.
Autores: Isaac Schrarstzhaupt / Larissa Brussa Reis
Revisores: Fernando Kokubun / Rute Maria Gonçalves de Andrade
Mas como um grupo tão importante e respeitado noticiaria que a doença pode matar uma em cada três pessoas no mundo, o que é o que diz a manchete da matéria? A resposta está em uma das maiores aliadas da desinformação: a interpretação equivocada.
Hoje foi publicada uma matéria do tabloide britânico Daily Mail que anuncia uma situação super alarmante, de um futuro sombrio, onde o novo coronavírus poderia adquirir infinitas mutações que o tornaria imune às vacinas disponíveis e causaria estragos ainda maiores na população mundial.
Imediatamente, ao ler esse tipo de notícia, é nosso dever refletir sempre: “mas de onde veio essa informação?” Ao buscar a fonte, vimos que foi do SAGE (Scientific Advisory Group for Emergencies, ou Grupo Científico de Aconselhamento para Emergências) do próprio governo britânico.
O que o SAGE fez é algo que todos os governos (e inclusive empresas privadas) deveriam fazer sempre em suas gestões, ainda mais quando se trata de saúde pública: uma Matriz de Gerenciamento de Riscos.
Vamos rapidamente explicar como funciona essa Matriz de Gerenciamento de Riscos, qual a utilidade dela, e também vamos mostrar como isso acaba gerando más interpretações, muito em função de não termos a cultura de mapear riscos e nos prepararmos para eles.
Para exemplificar, podemos usar uma situação do nosso cotidiano, que se tornou perigosa durante a pandemia: sair de casa para fazer exercícios ao ar livre. Essa situação é extremamente corriqueira, não é? Mas ela possui algum risco? Possui! E como podemos tratar esses riscos? Identificando-os e mapeando-os da seguinte maneira:
Antes de continuar, é sempre bom lembrar o significado dessas três palavras do último item (prevenir, mitigar e assumir):
Vamos fazer um exercício breve de mapeamento de riscos da situação “sair de casa para fazer exercícios”:
A lista poderia seguir adiante, mas com esses riscos já podemos fazer o exercício similar ao que o SAGE fez com as possibilidades futuras. Percebam que nenhum desses riscos que delineamos acima são impossíveis de acontecer! Todos podem, sim, acontecer, e todos tem uma possibilidade e um impacto. Podemos inclusive escrever ao lado de cada risco a sua possibilidade de acontecer (alta, média ou baixa) e o seu impacto (alto, médio ou baixo), formando, assim, a tal MATRIZ de Gerenciamento de Riscos. Aqui um exemplo:
Fonte: https://www.siteware.com.br/blog/projetos/o-que-e-matriz-risco/
Após mapear esses riscos e fazer essa análise, podemos então decidir se vamos prevenir, mitigar ou assumir os riscos! Usando novamente nosso exemplo: o que podemos fazer então com os riscos delineados?
Probabilidade: dado o momento de intensa circulação do vírus, o risco é alto mesmo entre os vacinados
Impacto: dependendo se fui vacinado, os riscos vão de leves a moderados, e poderão ser graves caso eu não esteja vacinado ainda, ou mesmo vacinado eu apresente alguma comorbidade importante
Ação: Prevenir: posso usar uma boa máscara PFF2, manter o distanciamento das outras pessoas e lavar bem as mãos ao chegar em casa
Entenderam como funciona? Em resumo: delinear um risco não significa, nem de longe, que ele VAI acontecer, e que a pessoa que está delineando o risco QUER que ele aconteça. É justamente o contrário: ao imaginar todas as possibilidades, e criar ações para se preparar para elas, REDUZIMOS a probabilidade de sofrermos com isso, caso aconteça.
Tendo explicado, agora fica fácil de entender o relatório do SAGE! O próprio nome do relatório é “Can we predict the limits of SARS-CoV-2 variants and their phenotypic consequences?”, ou “Podemos prever os limites das variantes do SARS-CoV-2 e suas consequências?” É justamente em um esforço de tentar delinear os riscos possíveis, quais os impactos desses riscos, as probabilidades deles acontecerem e o que deveria/poderia ser feito para isso. Vamos pegar um dos cenários do relatório do SAGE (o que levou a matéria a fazer essa manchete bastante alarmista) e mostrar como o que eles estão fazendo, na verdade, é nos ajudar a nunca mais passar problemas com essa doença:
Cenário 1: uma variante que causa doença severa em uma proporção maior da população em relação ao que aconteceu até então. Por exemplo, com mortalidade/morbidade similar a outros coronavírus zoonóticos como o SARS-CoV (+/- 10% fatalidade por caso detectado) ou o MERS-CoV (+/- 35% fatalidade por caso detectado). Isso poderia ser causado por:
Possibilidade de aquisição de alterações no material genético: enquanto o vírus estiver circulando bastante, é alta.
Possibilidade de um fenótipo de maior gravidade: possibilidade realista.
Impacto: alto. A não ser que aconteça uma mudança significativa na proteína spike, as vacinas atuais baseadas nessa proteína tem alta chance de continuar a proteger contra as formas graves da doença. No entanto, um aumento de mortalidade/morbidade seria esperado mesmo com a vacinação, pois as vacinas não entregam imunidade absoluta, ou seja, não possuem 100% de eficácia e não previnem a infecção inicial na maioria dos indivíduos.
O que podemos fazer?
Nesse ponto, é importante lembrar que a situação atual ainda é de escassez de vacinas em diversos países do mundo, especialmente aqueles com poucos recursos financeiros para a aquisição das mesmas. Nesse momento, a OMS faz um apelo para que os países que já se aproximam do final do esquema vacinal de duas doses, facilitem a aquisição de doses de vacinas por países que ainda estão longe dessa realidade. Leia mais aqui.
Na parte final apresentamos o texto original desse cenário e também providenciamos o link do relatório completo.
Perceberam que o que eles fizeram é justamente um mapeamento de riscos e de possíveis ações para prevenir ou mitigar estes riscos? Isso não quer dizer, de maneira alguma, que isso VAI acontecer. Inclusive há a menção de estocar drogas profiláticas, sendo que elas ainda não existem, é justamente uma possibilidade de, caso consigam desenvolver uma droga, providenciar a possibilidade de estocá-la.
Talvez por não possuirmos uma cultura de prevenção possamos ficar chocados ao ler relatórios de gerenciamento de possíveis riscos, pois podemos achar que isso é uma garantia de que esses riscos irão acontecer, sendo que é justamente o contrário: pensar em todos os riscos possíveis, mesmo que a possibilidade seja rara, e pensar em ações para enfrentá-los caso aconteçam!
Esperamos ter ajudado a todos a entenderem um pouco mais tanto do papel do SAGE quanto da gestão de riscos em si!
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Texto do cenário um, traduzido acima:
Scenario One: A variant that causes severe disease in a greater proportion of the population than has occurred to date. For example, with similar morbidity/mortality to other zoonotic coronaviruses such as SARS-CoV (~10% case fatality) or MERS-CoV (~35% case fatality). This could be caused by: