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“Interpretação equivocada e a importância da matriz de gerenciamento de riscos”

07.08.2021

Por: Mell

Fonte da imagem: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52444332

 

Ah! O  combate à desinformação! Esse triste mas necessário capítulo da divulgação científica acaba sempre vindo à tona, seja com matérias não tão bem escritas ou mesmo divulgação tendenciosa de informações inúteis para a população.

Autores: Isaac Schrarstzhaupt / Larissa Brussa Reis

Revisores: Fernando Kokubun / Rute Maria Gonçalves de Andrade

Mas como um grupo tão importante e respeitado noticiaria que a doença pode matar uma em cada três pessoas no mundo, o que é o que diz a manchete da matéria? A resposta está em uma das maiores aliadas da desinformação: a interpretação equivocada. 

Hoje foi publicada uma matéria do tabloide britânico Daily Mail que anuncia uma situação super alarmante, de um futuro sombrio, onde o novo coronavírus poderia adquirir infinitas mutações que o tornaria imune às vacinas disponíveis e causaria estragos ainda maiores na população mundial. 

Imediatamente, ao ler esse tipo de notícia, é nosso dever refletir sempre: “mas de onde veio essa informação?” Ao buscar a fonte, vimos que foi do SAGE (Scientific Advisory Group for Emergencies, ou Grupo Científico de Aconselhamento para Emergências) do próprio governo britânico. 

O que o SAGE fez é algo que todos os governos (e inclusive empresas privadas) deveriam fazer sempre em suas gestões, ainda mais quando se trata de saúde pública: uma Matriz de Gerenciamento de Riscos. 

Vamos rapidamente explicar como funciona essa Matriz de Gerenciamento de Riscos, qual a utilidade dela, e também vamos mostrar como isso acaba gerando más interpretações, muito em função de não termos a cultura de mapear riscos e nos prepararmos para eles.

Para exemplificar, podemos usar uma situação do nosso cotidiano, que se tornou perigosa durante a pandemia: sair de casa para fazer exercícios ao ar livre. Essa situação é extremamente corriqueira, não é? Mas ela possui algum risco? Possui! E como podemos tratar esses riscos? Identificando-os e mapeando-os da seguinte maneira:

  • Os possíveis riscos. 
  • A chance desses riscos acontecerem, 
  • O impacto que causará caso aconteçam,
  • O que fazer: prevenir, mitigar ou assumir esses riscos?

Antes de continuar, é sempre bom lembrar o significado dessas três palavras do último item (prevenir, mitigar e assumir):

  • Prevenir: tomar uma ação agora mesmo para garantir que aquele risco seja eliminado, ou seja, não aconteça;
  • Mitigar: tomar uma ação agora para tornar o impacto do risco mais brando, mais suave, caso aconteça;
  • Assumir: deixar sem fazer nada e, caso acontecer o risco, tomar uma ação de acordo (isso a gente conhece bem, né? hehehe)

Vamos fazer um exercício breve de mapeamento de riscos da situação “sair de casa para fazer exercícios”:

  • Posso me contaminar com a Covid-19?
  • Posso ser atropelado?
  • Posso passar mal no meio da caminhada?
  • Posso encontrar um cachorrinho abandonado com fome no meio do caminho?

A lista poderia seguir adiante, mas com esses riscos já podemos fazer o exercício similar ao que o SAGE fez com as possibilidades futuras. Percebam que nenhum desses riscos que delineamos acima são impossíveis de acontecer! Todos podem, sim, acontecer, e todos tem uma possibilidade e um impacto. Podemos inclusive escrever ao lado de cada risco a sua possibilidade de acontecer (alta, média ou baixa) e o seu impacto (alto, médio ou baixo), formando, assim, a tal MATRIZ de Gerenciamento de Riscos. Aqui um exemplo:

Fonte: https://www.siteware.com.br/blog/projetos/o-que-e-matriz-risco/

Após mapear esses riscos e fazer essa análise, podemos então decidir se vamos prevenir, mitigar ou assumir os riscos! Usando novamente nosso exemplo: o que podemos fazer então com os riscos delineados?

  • Posso me contaminar com a Covid-19?

Probabilidade: dado o momento de intensa circulação do vírus, o risco é alto mesmo entre os vacinados

Impacto: dependendo se fui vacinado, os riscos vão de leves a moderados, e poderão ser graves caso eu não esteja vacinado ainda, ou mesmo vacinado eu apresente alguma comorbidade importante

Ação: Prevenir: posso usar uma boa máscara PFF2, manter o distanciamento das outras pessoas e lavar bem as mãos ao chegar em casa

  • Posso ser atropelado?
    • Probabilidade: raro
    • Impacto: grave/gravíssimo
    • Ação: mitigar: Não ir em ruas movimentadas e não usar fone de ouvido com músicas muito altas
  • Posso passar mal no meio da caminhada?
    • Probabilidade: raro
    • Impacto: grave/gravíssimo
    • Ação: mitigar: Fazer um check up nos meus sinais e dar uma exercitada breve em casa antes de sair longe, e levar o telefone celular com bateria cheia;
  • Posso encontrar um cachorrinho abandonado com fome no meio do caminho?
    • Probabilidade: alta
    • Impacto: leve
    • Ação: mitigar: levar um saquinho de ração junto comigo para, caso encontre, saciar a fome do cachorrinho.

Entenderam como funciona? Em resumo: delinear um risco não significa, nem de longe, que ele VAI acontecer, e que a pessoa que está delineando o risco QUER que ele aconteça. É justamente o contrário: ao imaginar todas as possibilidades, e criar ações para se preparar para elas, REDUZIMOS a probabilidade de sofrermos com isso, caso aconteça.

Tendo explicado, agora fica fácil de entender o relatório do SAGE! O próprio nome do relatório é “Can we predict the limits of SARS-CoV-2 variants and their phenotypic consequences?”, ou “Podemos prever os limites das variantes do SARS-CoV-2 e suas consequências?” É justamente em um esforço de tentar delinear os riscos possíveis, quais os impactos desses riscos, as probabilidades deles acontecerem e o que deveria/poderia ser feito para isso. Vamos pegar um dos cenários do relatório do SAGE (o que levou a matéria a fazer essa manchete bastante alarmista) e mostrar como o que eles estão fazendo, na verdade, é nos ajudar a nunca mais passar problemas com essa doença:

Cenário 1: uma variante que causa doença severa em uma proporção maior da população em relação ao que aconteceu até então. Por exemplo, com mortalidade/morbidade similar a outros coronavírus zoonóticos como o SARS-CoV (+/- 10% fatalidade por caso detectado) ou o MERS-CoV (+/- 35% fatalidade por caso detectado). Isso poderia ser causado por:

  1. Mutações ou recombinações com outros genes virais. Isso pode ocorrer através de uma mudança nos genes internos do SARS-CoV-2 tais como os genes que codificam para as proteínas responsáveis por copiar o material genético do vírus  ou proteínas acessórias. Esses genes podem determinar o desfecho da infecção ao afetar a maneira pela qual o vírus é detectado pela célula, a velocidade de replicação do vírus e também a resposta das células do sistema imune à infecção. Existem precedentes de outros coronavírus terem adquirido genes adicionais do seu hospedeiro, deles mesmos ou de outros vírus.
  1. Pela recombinação entre duas VOCs (Variant of Concern em inglês ou  variantes de preocupação). Uma variante com grande mudança na proteína spike atual, utilizada nas vacinas e outra variante com uma replicação viral mais eficiente e transmissão mais acentuada, como por exemplo, uma recombinação entre as variantes beta com a alfa ou com a delta, respectivamente. Alternativamente, a recombinação pode ocorrer entre duas variantes diferentes com duas estratégias alternativas para sobrepor a imunidade natural, combinadas para possibilitar uma mudança aditiva das características do vírus, resultando em maior replicação viral, e potencial aumento da mortalidade/morbidade.

Possibilidade de aquisição de alterações no material genético: enquanto o vírus estiver circulando bastante, é alta.

Possibilidade de um fenótipo de maior gravidade: possibilidade realista.

Impacto: alto. A não ser que aconteça uma mudança significativa na  proteína spike, as vacinas atuais baseadas nessa proteína tem alta chance de continuar a proteger contra as formas graves da doença. No entanto, um aumento de mortalidade/morbidade seria esperado mesmo com a vacinação, pois as vacinas não entregam imunidade absoluta, ou seja, não possuem 100% de eficácia e não previnem a infecção inicial na maioria dos indivíduos.

O que podemos fazer?

  • Reduzir a mobilidade das pessoas e consequentemente a transmissão do SARS-CoV-2 no Reino Unido (nota do tradutor: o SAGE é uma entidade do governo britânico, por isso a ênfase no Reino Unido) para reduzir o risco de de recombinação e mutações;
  • Minimizar a entrada de novas variantes vindas de outros territórios geográficos (para reduzir o risco de recombinação entre variantes)
  • Garantir uma vigilância ativa para zoonoses com potencial de infecção humana e, se necessário, considerar vacinação animal, sacrifícios ou políticas de isolamento;
  • Continuar a monitorar a associação da gravidade da doença com as variantes (para tentar detectar mudanças na gravidade do vírus);
  • Continuar buscando o desenvolvimento de drogas terapêuticas e profiláticas para o SARS-CoV-2 e os sintomas da doença;
  • Considerar estocar drogas profiláticas e terapêuticas para o SARS-CoV-2;
  • Considerar doses extras de vacina para manter a proteção contra doenças graves. 

Nesse ponto, é importante lembrar que a situação atual ainda é de escassez de vacinas em diversos países do mundo, especialmente aqueles com poucos recursos financeiros para a aquisição das mesmas. Nesse momento, a OMS faz um apelo para que os países que já se aproximam do final do esquema vacinal de duas doses, facilitem a aquisição de doses de vacinas por países que ainda estão longe dessa realidade. Leia mais aqui. 

Na parte final apresentamos o texto original desse cenário e também providenciamos o link do relatório completo.

Perceberam que o que eles fizeram é justamente um mapeamento de riscos e de possíveis ações para prevenir ou mitigar estes riscos? Isso não quer dizer, de maneira alguma, que isso VAI acontecer. Inclusive há a menção de estocar drogas profiláticas, sendo que elas ainda não existem, é justamente uma possibilidade de, caso consigam desenvolver uma droga, providenciar a possibilidade de estocá-la.

Talvez por não possuirmos uma cultura de prevenção possamos ficar chocados ao ler relatórios de gerenciamento de possíveis riscos, pois podemos achar que isso é uma garantia de que esses riscos irão acontecer, sendo que é justamente o contrário: pensar em todos os riscos possíveis, mesmo que a possibilidade seja rara, e pensar em ações para enfrentá-los caso aconteçam!

Esperamos ter ajudado a todos a entenderem um pouco mais tanto do papel do SAGE quanto da gestão de riscos em si!

———

Texto do cenário um, traduzido acima:

Scenario One: A variant that causes severe disease in a greater proportion of the population than has occurred to date. For example, with similar morbidity/mortality to other zoonotic coronaviruses such as SARS-CoV (~10% case fatality) or MERS-CoV (~35% case fatality). This could be caused by:

  1. Point mutations or recombination with other host or viral genes. This might occur through a change in SARS-CoV-2 internal genes such as the polymerase proteins or accessory proteins. These genes determine the outcome of infection by affecting the way the virus is sensed by the cell, the speed at which the virus replicates and the antiviral  response of the cell to infection. There is precedent for Coronaviruses (CoVs) to acquire additional genes or sequences from the host, from themselves or from other viruses.
  2. By recombination between two VOC or VUIs. One with high drift (change in the spike glycoprotein) from the current spike glycoprotein gene used in the vaccine and the other with a more efficient replication and transmission determined by internal genes, for example, a recombination between beta and alpha or delta variants respectively. Alternatively, recombination may occur between two different variants with two different strategies for overcoming innate immunity, combining to give an additive or synergistic change of phenotype resulting in higher replication of the virus – and potentially increased morbidity and mortality.
    Likelihood of genotypic change in internal genes: Likely whilst the circulation of SARS- CoV-2 is high.
    Likelihood of increased severity phenotype: Realistic possibility.
    Impact: High. Unless there is significant drift in the spike glycoprotein gene sequence, then the current spike glycoprotein-based vaccines are highly likely to continue to provide protection against serious disease. However, an increase in morbidity and mortality would be expected even in the face of vaccination since vaccines do not provide absolute sterilising immunity i.e. they do not fully prevent infection in most individuals.
    What can we do?
    • Consider vaccine booster doses to maintain protection against severe disease.
    • Reduce transmission of SARS-CoV-2 within the UK (to reduce risk of point
      mutations, recombination).
    • Minimise introduction of new variants from other territories (to reduce risk of
      recombination between variants).
    • Targeted surveillance for reverse zoonoses, and if necessary, consider animal
      vaccination, slaughter, or isolation policies.
    • Continue to monitor disease severity associated with variants (to identify
      changes in phenotype).
    • Continue to develop improved prophylactic and therapeutic drugs for SARS-
      CoV-2 and disease symptoms.
    • Consider stockpiling prophylactic and therapeutic drugs for SARS-CoV-2.
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