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Tipo sanguíneo e Coronavírus: existe relação?

26.04.2020

Por: Mell

Referência da imagem: RESUMO ESCOLAR. Sangue: Sistema ABO. Disponível em: https://www.resumoescolar.com.br/biologia/sangue-sistema-abo/. Acesso em: 23 abr. 2020.

   Texto: Amanda Gonzalez (facebook: amanda.gonzalez.5264)       

Revisão: Franciele Peloso @francielepeloso, Henrique Flores , Marcelo Bragatte @marcelobragatte

Nos anos de 2002 e 2003, o mundo vivenciou a epidemia do vírus SARS-CoV, o coronavírus causador da Síndrome Respiratória Aguda (do inglês, SARS), “primo” do patógeno causador da COVID-19. Os primeiros casos surgiram na província de Guangdong, na China, em novembro de 2002 [1]. Em março de 2003, o paciente zero da SARS em Hong Kong era admitido no Hospital Prince of Wales, onde teve contato com diversos profissionais de saúde. Por desconhecimento da nova doença, o paciente não foi posto em isolamento e nenhuma medida especial de proteção individual ou coletiva foi tomada, o que levou à contaminação de dezenas de funcionários do hospital. Felizmente, ele acabou se recuperando [2]. Outras 774 pessoas não sobreviveram à epidemia [3].

           Buscando estudar a influência do tipo sanguíneo na susceptibilidade à infecção pelo SARS-CoV, pesquisadores analisaram o sangue de 45 funcionários do Hospital Prince of Wales que tiveram contato desprotegido com o paciente zero. Dos 45, 42.2% eram tipo O, 17.8% tipo A, 33.3% tipo B e 6.7% tipo AB, o que se aproximava das porcentagens da população de Hong Kong na época, exceto pelos tipos A e B: 40,77% O, 25,77% A, 26,8% B e 6,66% AB [4, 5]. Ao todo, 34 dos 45 se infectaram com o vírus após exposição. O interessante foi que mais da metade dos funcionários infectados (23/34) tinham tipo sanguíneo não-O (A, B ou AB), sendo que o tipo O era o mais prevalente naquele grupo. Apesar das limitações da pesquisa, sobretudo o número baixo de indivíduos analisados e a falta de uniformidade de exposição ao vírus entre os funcionários, o estudo mostrou de forma preliminar que pessoas do tipo O seriam menos susceptíveis à infecção pelo coronavírus da SARS [4].

           Trazendo uma possível explicação para esse fenômeno, um artigo publicado em 2008 mostrou que anticorpos anti-A podem inibir a ligação e a entrada do SARS-CoV na célula hospedeira em laboratório. Esses anticorpos anti-A são moléculas naturalmente presentes nos sangues tipo O e tipo B. Assim, faria sentido indivíduos do tipo O serem mais resistentes à infecção, como mostrado no texto acima. Contudo, devemos lembrar que esse efeito foi observado apenas em células, não tendo comprovação nem em animais e nem em humanos, além de ser necessário  esclarecer porque os indivíduos B não se mostraram resistentes também, visto que possuem anti-A [6]. Outro ponto a ser considerado é que o grupo O é o único que não possui as moléculas A ou B, sendo que diversos tecidos do corpo que expressam o receptor principal do SARS-CoV, a enzima conversora de angiotensina (ACE-2), também expressam A e B na maioria das pessoas dos tipos A, B ou AB. Estudar de forma mais aprofundada a relação entre a presença de ACE-2 e de A e B com pode ser um bom alvo para as próximas pesquisas [7, 8].

           É possível esperar resultados semelhantes para o novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19? Dia 27 de março pesquisadores publicaram um trabalho acerca do tema, e os resultados repercutiram em diversos portais de notícias. Nele, foi feita a tipagem sanguínea de casos de COVID-19 de dois hospitais de cidade de Wuhan e um da cidade de Shenzhen, China [9].

           Analisando os tipos sanguíneos dos 1775 pacientes infectados do Hospital Jinyintan, em Wuhan, foi visto que a porcentagem de indivíduos tipo O infectados era significativamente menor do que a média da população – uma redução de 33,84% para 25,80%. Contrariamente, a porcentagem de indivíduos tipo A era maior, sendo 37,75% de infectados em comparação com 32,26% na população saudável da cidade. Desses 1775 pacientes, 206 vieram a falecer, sendo 85/206 do tipo A e 52/206 do tipo O. Portanto, pode-se concluir que os indivíduos tipo A seriam mais propensos a serem infectados e a morrerem pelo novo coronavírus, enquanto os do tipo O seriam menos propensos. A análise do sangue de 113 pacientes do Hospital Renmin da Universidade de Wuhan confirmou a menor propensão das pessoas tipo O se infectarem, mas o aumento de casos em pessoas A não foi significativo. Já o estudo de 285 pacientes do Hospital Third People’s de Shenzhen não mostrou aumento de susceptibilidade para indivíduos A, mas sim para indivíduos AB, e confirmou mais uma vez uma menor propensão à infecção em indivíduos do grupo O. Segundo os autores do trabalho, apesar dos resultados divergentes entre os grupos analisados com relação à susceptibilidade de indivíduos A, é possível afirmar, após junção de todos os grupos, que as pessoas com esse tipo sanguíneo têm maior risco de contaminação com o SARS-CoV-2 [9].

           Tratam-se de conclusões muito interessantes, pois mostram coerência com os outros dois estudos discutidos anteriormente. Porém, o trabalho possui diversas limitações – algumas são até apontadas pelos próprios autores – como: 1) o trabalho não foi revisado por outros pesquisadores da área (revisão por pares), pois sua publicação fora acelerada devido ao interesse mundial no assunto; 2) a metodologia não define critérios de aceitação para inclusão de pacientes no estudo e também não descreve qual técnica foi utilizada para realização da tipagem sanguínea; 3)  a ausência de informações sobre doenças crônicas dos pacientes impossibilita uma análise por grupos de doenças e 4) o número pequeno de pacientes vindos de dois hospitais, não dão poder estatístico às análises para ter mais solidez nas conclusões. Assim, os autores alertam que o estudo é muito preliminar, não devendo guiar a prática clínica. Também reforçam que pessoas de TODOS os tipos sanguíneos devem tomar os devidos cuidados contra a COVID-19 [9].

           Apesar de parecer uma relação pouco usual, muitos artigos científicos relacionam os “tipos de sangue” com susceptibilidade à infecção por patógenos, como nos casos do vírus HIV (causador da AIDS), do protozoário Plasmodium falciparum (causador da malária) e da bactéria Helycobacter pylori (uma das causadoras da gastrite), por exemplo. É importante lembrar também que as moléculas A, B e O não são as únicas envolvidas nessas relações. Outras moléculas (antígenos) presentes nas células do nosso sangue, menos conhecidas, também podem desempenhar diversos papéis durante infecções, revelando uma grande complexidade acerca do tema [10]. Porém, até o momento da publicação deste texto, não havia sido disponibilizado nenhum estudo relacionando o antígeno D (ou fator Rh) ou outro antígeno sanguíneo com o novo coronavírus.

 Referências:

[1] XU, Rui-heng et al. Epidemiologic Clues to SARS Origin in China. Emerging Infectious Diseases, [s.l.], v. 10, n. 6, p. 1030-1037, jun. 2004. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). http://dx.doi.org/10.3201/eid1006.030852. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3323155/. Acesso em: 23 abr. 2020.

[2] WONG, Raymond S.m.; HUI, David S.. Index Patient and SARS Outbreak in Hong Kong. Emerging Infectious Diseases, [s.l.], v. 10, n. 2, p. 339-341, fev. 2004. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). http://dx.doi.org/10.3201/eid1002.030645. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3322929/. Acesso em: 23 abr. 2020.

[3] UNITED STATES OF AMERICA. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Frequently Asked Questions About SARS. Disponível em: https://www.cdc.gov/sars/about/faq.html. Acesso em: 23 abr. 2020.

[4] CHENG, Yufeng et al. ABO Blood Group and Susceptibility to Severe Acute Respiratory Syndrome. Jama, [s.l.], v. 293, n. 12, p. 1447-1451, 23 mar. 2005. American Medical Association (AMA). http://dx.doi.org/10.1001/jama.293.12.1450-c. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/200582?resultClick=1. Acesso em: 23 abr. 2020.

[5] XXIIIrd Congress of the ISBT Abstracts. Vox Sanguinis, [s.l.], v. 67, n. 2, p. 1-174, jul. 1994. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/j.1423-0410.1994.tb03669.x. Disponível em: https://www.karger.com/Article/Pdf/462688. Acesso em: 23 abr. 2020.

[6] GUILLON, Patrice et al. Inhibition of the interaction between the SARS-CoV Spike protein and its cellular receptor by anti-histo-blood group antibodies. Glycobiology, [s.l.], v. 18, n. 12, p. 1085-1093, 25 set. 2008. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/glycob/cwn093. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7108609/. Acesso em: 23 abr. 2020.

[7] HAMMING, I et al. Tissue distribution of ACE2 protein, the functional receptor for SARS coronavirus. A first step in understanding SARS pathogenesis. The Journal Of Pathology, [s.l.], v. 203, n. 2, p. 631-637, 7 maio 2004. Wiley. http://dx.doi.org/10.1002/path.1570. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7167720/. Acesso em: 23 abr. 2020.

[8] RAVN, Vibeke et al. Tissue distribution of histo-blood group antigens. Review article. Apmis, [s.l.], v. 108, n. 1, p. 1-28, jan. 2000. Wiley. http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-0463.2000.d01-1.x. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1034/j.1600-0463.2000.d01-1.x?sid=nlm%3Apubmed. Acesso em: 23 abr. 2020.

[9] ZHAO, Jiao et al. Relationship between the ABO Blood Group and the COVID-19 Susceptibility. Medrxiv Preprint, [s.l.], 16 mar. 2020. Cold Spring Harbor Laboratory. http://dx.doi.org/10.1101/2020.03.11.20031096. Disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.11.20031096v2.full.pdf+html. Acesso em: 23 abr. 2020.

[10] COOLING, Laura et al. Blood Groups in Infection and Host Susceptibility. Clinical Microbiology Reviews, [s.l.], v. 28, n. 3, p. 801-870, 17 jun. 2015. American Society for Microbiology. http://dx.doi.org/10.1128/cmr.00109-14. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4475644/. Acesso em: 23 abr. 2020.

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