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A corrida de uma vacina de mRNA contra a COVID-19: já podemos dizer que funciona?

04.06.2020

Por: Mell

Texto: Amanda Gonzalez (facebook: amanda.gonzalez.5264)

Revisores: Ananias Q. de O. Filho (@ananias_1979); Mellanie F. Dutra (@mellziland), Marcelo Bragatte (@BragatteMarcelo)

No último dia 18, a empresa de biotecnologia estadunidense Moderna Therapeutics anunciou que obteve resultados positivos após aplicação preliminar de sua vacina contra o novo coronavírus em humanos. A vacina utiliza a promissora tecnologia que explora o uso do RNA mensageiro, ou mRNA, e é composta pela molécula intitulada mRNA-1273 [1]. No mundo, ainda não existem vacinas aprovadas que utilizam essa abordagem.

Mas como funciona uma vacina de mRNA?  O mRNA é uma forma de material genético que é responsável por carregar o código de formação das proteínas do nosso corpo. Nos anos 90, pesquisadores descobriram que a injeção de mRNA produzido em laboratório em animais ocasionava aumento da proteína de interesse (aquela especificamente codificada pelo mRNA sintetizado). Assim, começou a se pensar sobre como utilizar esse fenômeno para fins terapêuticos: dentre eles, a imunização através de vacina. Quando somos invadidos por algum patógeno, nosso sistema imunológico utiliza as proteínas do invasor como base para formação de anticorpos e células de defesa, combatendo a infecção. A vacina de mRNA objetiva fornecer ao corpo o código dessas proteínas invasoras, que então serão sintetizadas dentro das células e apresentadas ao sistema imune, a fim de treiná-lo antecipadamente contra doenças [2,3].

Alguns vírus, como os coronavírus, também carregam e utilizam moléculas de mRNA para produzir suas próprias proteínas dentro das nossas células. Técnicos da Moderna, junto ao Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), analisaram o primeiro sequenciamento do mRNA do vírus causador da COVID-19, e rapidamente montaram e produziram um mRNA do vírus em laboratório, fazendo alterações que eliminam o perigo para humanos, com a intenção de criar uma vacina. O processo foi realmente muito rápido: o sequenciamento foi disponibilizado pelo professor Zhang Yongzhen no dia 11 de janeiro e, dois dias depois, a Moderna já havia anunciado o mRNA da vacina, ou mRNA-1273, como foi tecnicamente batizado [3, 4, 5].

De forma geral, são necessários anos de pesquisa para que uma vacina ou medicamento seja disponibilizado à população (ver esquema abaixo). Contudo, a emergência da pandemia permitiu que a vacina de mRNA-1273 pulasse uma etapa importante: os testes em animais que precedem a testagem em humanos. Em 16 de março, sem ter resultados em modelo animal, a Moderna iniciou seu primeiro ensaio clínico, injetando voluntários saudáveis. Essa situação gerou diversas discussões de cunho ético, levantando argumentos acerca da necessidade de salvar vidas da COVID-19 apesar da chance, teoricamente pequena, mas possível, de danos à saúde dos voluntários. O consenso, levando em conta as evidências, foi a aprovação do seguimento das fases clínicas. A testagem em camundongos, porém, está sendo feita de forma concomitante à fase clínica [1, 6].

Em seu anúncio recente, a empresa de biotecnologia divulgou os resultados preliminares que justificaram a expansão do primeiro estudo (de 45 voluntários para 155) e aprovação da segunda fase do estudo em humanos (600 voluntários), além de animarem muito os investidores:

– após duas doses da vacina, todos os participantes que receberam as doses de 25 ug e 100 ug de mRNA-1273 soroconverteram, ou seja, tiveram um aumento de 4 vezes ou mais na quantidade de anticorpos circulantes no sangue contra o SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19. Isso equivaleria à quantidade de anticorpos vista em pessoas que já se infectaram e se recuperaram do vírus;

– o título de anticorpos neutralizantes dos oito primeiros participantes dos grupos que receberam 25 ug e 100 ug (quatro de cada grupo) se mostrou igual ou maior do que o título encontrado em pacientes que já tiveram o vírus. Anticorpos neutralizantes são aqueles que são capazes de bloquear a ação do patógeno no corpo;

– a vacina preveniu a replicação viral no pulmão dos camundongos testados;

– a vacina com mRNA-1273 se mostrou segura, de forma geral [1, 7].

Diante das conclusões apresentadas, é preciso refletir sobre o real peso científico desses dados. Primeiramente, é necessário que os desenvolvedores da vacina descrevam as análises em forma de artigo científico e as submetam à revisão metodológica e estatística por outros pesquisadores, a fim de que elas realmente tenham total confiabilidade, visto que a comunicação dos resultados se deu apenas no modelo press release (comunicado para a imprensa). Um press release é um texto desenvolvido de forma livre pelo comunicante, que geralmente não mostra os dados de forma completa e minuciosa, e que não objetiva ser revisado por pares. É importante apontar que esse processo não será do dia para a noite: a conclusão formal do primeiro estudo clínico está marcada para novembro de 2021 [7]. Isso mostra o quão preliminar são as observações divulgadas e evidencia novamente um atropelamento de etapas no desenvolvimento da vacina, visto que o segundo estudo teve início no dia 25 de maio de 2020 [8].

O segundo ponto se refere à análise dos anticorpos. Mesmo já tendo trabalhos que mostram que há soroconversão em pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2, ainda não sabemos se a presença de anticorpos contra o vírus realmente confere uma imunidade minimamente duradoura nas pessoas [9]. A literatura descreve casos de pacientes que voltaram a testar positivo mesmo após se recuperarem da COVID-19 [10]. Também temos que analisar com mais cuidado os experimentos feitos com camundongos, pois apenas a medição de replicação viral no pulmão não é suficiente para concluir que o vírus não causou danos ao animal. Devemos lembrar que o novo coronavírus gera manifestações sistêmicas, não se limitando muitas vezes às vias respiratórias [11].

Sobre a segurança da vacina, a Moderna descreve que um dos voluntários que recebeu a dose de 100 ug apresentou uma importante vermelhidão na região de aplicação. Também revela que três voluntários que receberam a dose mais alta do estudo – 250 ug – tiveram reações adversas bastante notáveis, que se resolveram espontaneamente, porém não descreve detalhes a respeito [1]. Essa semana, um dos três voluntários veio a público, alegando que a reação à injeção foi bastante severa (febre de 39ºC seguida de desmaio), mas que as pessoas devem lembrar que acontecimentos como esse fazem parte do processo, e que não devemos parar de apoiar o desenvolvimento da vacina por conta disso. Ademais, ele recebera a dose mais alta do estudo, e as doses mais altas estão inclusas justamente para que consigamos saber qual a escala de dose segura e eficaz em seres humanos [12].

Portanto, apesar do avanço acelerado da vacina mRNA-1273, devemos encarar o processo com criticidade e ter em mente que estamos muito longe de poder aprová-la com segurança, de forma que a melhor maneira de se proteger contra o coronavírus ainda é realizar o isolamento social.  Para quem tiver interesse, é possível acompanhar os estudos descritos aqui através do portal ClinicalTrials.gov, nos links: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/record/NCT04283461?term=mrna-1273&draw=2&rank=2&view=record e https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04405076?term=mrna-1273&draw=2&rank=1.

[1] https://investors.modernatx.com/news-releases/news-release-details/moderna-announces-positive-interim-phase-1-data-its-mrna-vaccine/

[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5906799/

[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7218962/

[4] https://www.modernatx.com/modernas-work-potential-vaccine-against-covid-19

[5] http://virological.org/t/novel-2019-coronavirus-genome/319

[6] https://www.livescience.com/coronavirus-vaccine-trial-no-animal-testing.html

[7] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/record/NCT04283461?term=mrna-1273&draw=2&rank=2&view=record

[8] https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04405076?term=mrna-1273&draw=2&rank=1

[9] https://www.nature.com/articles/s41591-020-0897-1

[10] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2766097

[11] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30937-5/fulltext

[12] https://www.statnews.com/2020/05/26/moderna-vaccine-candidate-trial-participant-severe-reaction/

[13] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3603987/

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