Autores: Isaac Schrarstzhaupt (@schrarstzhaupt); Miguel Angel Buelta Martinez (@Martine44528723); Marcelo A. S. Bragatte (@marcelobragatte);
Revisores: Mellanie Fontes-Dutra (@mellziland)
ADENDO: Este texto está sendo republicado, em 11/11/2020, após sua publicação original em 10/11/2020. O texto original continha o título: “As mortes invisíveis: Porto Alegre” no sentido de chamar atenção para as diferenças e como podem ser importantes para a tomada de decisões no combate a pandemia, reiteramos que a Rede Análise Covid-19 é uma organização voluntária e apartidária, que não aprova o uso de seus textos para fins políticos.
Dados: um dos nossos maiores aliados para tomadas de decisão, principalmente nos últimos 30 anos, com equipamentos e programas cada vez mais sofisticados e cada vez mais disponíveis a todos. Ao analisarmos os dados, podemos entender o que realmente está acontecendo, além do que os nossos olhos podem enxergar, e tomar decisões mais assertivas, melhores do que as levadas apenas pelo instinto, justamente por essa dificuldade humana de enxergar o todo.
Mas, como em outros casos, os dados também trazem problemas, principalmente no que diz respeito à falta dos mesmos, ou sistemas divergentes que podem nos fazer interpretar algo que não representa efetivamente a realidade.
Agora, na pandemia do novo coronavírus, durante o ano de 2020, nunca aproximamos tanto a análise de dados da população em geral, com artigos, matérias e publicações diárias a respeito disso, o que é extremamente positivo, quando os dados e as análises são extraídos e feitas com cuidado.
Um destes dados, extremamente importante para o acompanhamento do impacto da COVID-19, é o número de óbitos causados pela doença em questão. Este número chega até a população através de muitas mãos, que analisam as declarações de óbito, separam as causas e fazem a notificação em sistemas de informação que, por fim, chegam até nós pelas várias mídias e redes sociais.
Assim como nos casos de COVID-19, também temos o fenômeno da subnotificação dos óbitos, pois existem atrasos entre o diagnóstico e a notificação em si nos sistemas que vem a público, e esta subnotificação vem sendo vista em todas as localidades, sendo algo não desejado, mas natural.
No Brasil, falando de COVID-19, temos mais de um sistema de notificação de óbitos, e não deveríamos ter diferenças significativas entre os sistemas. Um deles é o sistema que agrega os dados notificados pelos municípios e estados e os agrega no painel do Ministério da Saúde, e outro é o SIVEP-GRIPE, um sistema que é utilizado pela vigilância Epidemiológica das instâncias estaduais e municipais para inserção das fichas dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Além das vigilâncias epidemiológiocas, as unidades hospitalares e UPAS (Unidades de Pronto Atendimento) que possuem núcleo de epidemiologia também terão acesso ao SIVEP-GRIPE. Este sistema existe desde antes da pandemia de COVID-19. Todo óbito por SRAG é notificado no SIVEP-GRIPE, inclusive os óbitos cuja causa foi a COVID-19.
Sendo assim, temos como comparar os óbitos com confirmação de COVID-19 notificados ao Ministério da Saúde com os óbitos por SRAG cuja causa foi a COVID-19. No banco de dados do SIVEP-GRIPE, temos dois campos de município, o ID_MUNICIPIO (município de Notificação do óbito) e o ID_MN_RESI (município de residência do paciente). Estes números geram uma grande diferença entre os bancos de dados, conforme veremos adiante.
Tomando o Brasil como exemplo, na figura abaixo a curva azul corresponde ao comportamento, ao longo do tempo, dos óbitos totais por COVID-19 notificados pelos municípios ao Ministério da Saúde, que são notificados pelo município de residência do paciente. Já a curva amarela mostra só os óbitos por SRAG, que tiveram confirmação de COVID-19, notificados pelo sistema SIVEP-GRIPE, no município de notificação do óbito (hospital que fez a notificação).
Fig 1. Casos confirmados no Brasil de óbitos por SRAG com COVID-19, em amarelo, e em azul óbitos por COVID-19. Período de 02/04 a 23/10.
Na figura abaixo temos as curvas respectivas para a cidade de Porto Alegre.
Fig 2. Casos confirmados, em Porto Alegre, de óbitos por SRAG com COVID-19, em amarelo, e em azul óbitos por COVID-19. Período de 02/04 a 29/10.
Em Porto Alegre, temos uma diferença enorme entre as curvas. São 1.289 óbitos notificados ao Ministério da Saúde de residentes em Porto Alegre contra 1.929 óbitos notificados ao SIVEP-GRIPE de pacientes que faleceram em Porto Alegre. Um aumento de 50% em relação aos 1.289 notificados pelo município. Os óbitos de não residentes estão sendo repassados corretamente ao município de residência do paciente?
Isso inclusive nos leva a avaliar um indicador que já está muito ruim em Porto Alegre, o de mortes por milhão de habitantes. Como o município possui aproximadamente 1.400.000 habitantes, os 1.289 óbitos significam uma taxa de 921 mortes por milhão de habitantes. Ao compararmos estes 921 com Montevideo, a capital do Uruguai, um país vizinho, com condições climáticas similares, e uma população total de aproximadamente 1.380.000 habitantes, vemos que eles possuem 30 mortes por milhão de habitantes. Uma diferença assustadora, demonstrando que a mesma doença pode, sim, ter taxas diferentes, dependendo das ações tomadas para seu controle.
Já se usarmos os dados do SIVEP-GRIPE, de pacientes que faleceram em Porto Alegre mas podem residir em qualquer cidade (além de Porto Alegre), que são 1.929 óbitos, as mortes por milhão de habitantes chegam em 1.378.
Existem alguns motivos pelos quais podemos ter uma diferença entre as notificações emitidas pelo município e as do SIVEP-GRIPE, como:
Podemos ver essas diferenças no município de São Paulo, que possuía, até 01/11/2020, 13.600 óbitos notificados pelo município e 14.718 notificados no SIVEP-GRIPE, uma diferença de 8,22%. São Paulo também é um município de referência para muitas cidades do interior, como Porto Alegre, mas a diferença é muito menor. Se tivéssemos a mesma diferença de Porto Alegre em São Paulo, teríamos 20.400 óbitos notificados no SIVEP-GRIPE, ao invés dos 14.718.
Analisando outros estados, e o país como um todo, como vimos no começo do texto, vemos um comportamento muito similar à de São Paulo, onde os óbitos totais por COVID-19 notificados pelo município vão sendo cada vez mais próximos daqueles do SIVEP-GRIPE e,como natural, até maiores, ao oposto de Porto Alegre.
Fica então a dúvida: Porto Alegre, como um município que serve como referência de atendimento para vários municípios, e está tendo uma taxa exageradamente alta de óbitos, que fica ainda mais alta quando levamos em conta os óbitos de não residentes, irá lidar de maneira positiva a uma possível segunda onda, que já vem demonstrando seus sinais de reversão de tendência desde a metade de Setembro?