Autora: Melissa Medeiros Markoski*
*Bióloga, mestre e doutora em Biologia Celular e Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágios pós-doutorais em Imunologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); docente da UFCSPA.
Descoberto a pouco mais de sete meses, o novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19, vem despertando muito interesse sobre sua estrutura e sobre a forma como o sistema imune humano responde a ele. A importância disso, entre outros aspectos, é entender se a imunidade contra a doença será duradoura, o que ocorrerá se o vírus voltar a infectar a mesma pessoa, qual será o tempo e a força de neutralização do vírus no organismo humano, quais são as “porções” do vírus mais relevantes na elaboração de uma vacina e se esta vacina será eficaz. Nesse contexto, pesquisadores do Instituto Californiano de Tecnologia e da Universidade Rockefeller publicaram em 23 de junho na revista Cell o estudo “Structures of human antibodies bound to SARS-CoV-2 spike reveal common epitopes and recurrent features of antibodies” (Estruturas dos anticorpos humanos ligados à proteína Spike do SARS-CoV-2 revelam epítopos comuns e características recorrentes dos anticorpos), justamente para mostrar como as interações entre os antígenos (uma “porção”) do vírus e os anticorpos (moléculas de defesa, produzidas pelas células B do sistema imune) humanos “conversam”.
Para entendermos melhor a ação da resposta imune contra o SARS-CoV-2, vamos observar o arranjo viral: ele é composto basicamente de estruturas formadas por proteínas (27 ao todo), onde se destacam uma membrana de glicopotreínas, o envelope (proteína E), a coroa (proteína Spike, S) e o nucleocapsídeo (proteína N), que circunda o material genético (ácido ribonucleico, RNA). Assim, quando o vírus entra no nosso organismo, ele é reconhecido como um “corpo estranho” e englobado (processo denominado de endocitose) pelas células apresentadoras de antígenos, que são as células dendríticas e os monócitos (macrófagos), também componentes do sistema imune. Isso ocorre através dos receptores de reconhecimento de padrões (PRR), que reconhecem os padrões moleculares associados a patógenos (PAMPs). Ao entrar na célula, basicamente o que é liberado no interior celular é o RNA viral e a proteína S, que ativam consequentemente a sinalização imunológica inata. Entretanto, cabe ressaltar que a infecção viral se dá pelo contato do domínio ligante do receptor (RDB) da proteína S com a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) solúvel presente no organismo humano, sendo anterior à endocitose do vírus pelas células imunes.
No estudo, os autores primeiramente mostraram que as imunoglobulinas G (IgG), presentes no sangue de paciente recuperados da COVID-19 (plasma convalescente), estavam em quantidades neutralizantes (que inativam as partículas virais) aumentadas e ligadas à proteína S do SARS-CoV-2 com alta afinidade. Através de ensaios laboratoriais (ELISA, microscopia eletrônica e cromatografia), também foi mostrado que não houve adsorção (adesão) do RDB do SARS-CoV-2 com IgG de plasmas de pacientes controles (não afetados pelo SARS-CoV-2), que por sua vez, haviam reagido com RDBs de outros coronavírus, de resfriados, mostrando não ocorrer a chamada reação cruzada. Assim, esses resultados sugerem que a força de ligação (avidez) entre os IgG do plasma convalescente de pacientes da COVID-19 com o RDB da proteína S do SARS-CoV-2 é bastante forte em relação aos de outros coronavírus, o que demonstra uma boa neutralização das partículas virais no sangue.
Por outro lado e, um pouco mais a fundo, os autores também analisaram, por microscopia eletrônica de marcação negativa, os complexos formados pela proteína S viral com as porções F(ab) dos anticorpos presentes no soro policlonal (derivado de diferentes células B) dos pacientes positivos para COVID-19. Eles constataram que para alguns indivíduos, uma parte do RDB (S1), que faz justamente a ligação à ACE2, era sobreposto pelo F(ab) de alguns dos anticorpos. Os pesquisadores conseguiram identificar as sequências dos genes da região F(ab) capazes de bloquear a porção RDB/S1 do vírus, gerando uma importante informação para a projeção de vacinas.
Por fim, autores também constataram que as regiões RDB e S1 são muito pouco afetadas por mutações comuns (diferentemente de outros segmentos do SARS-CoV-2), mostrando assim que a terapêutica a base de plasma convalescente e/ou vacinas bem projetadas podem ser eficientes contra a pandemia da COVID-19.
Referências
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