Autor: Mateus Falco (@mateuslfalco)
Revisão: Izabela Carvalho (@carvalhoizabela) e Luciana Santana (@lucfsantana1812)
O personagem Chicó da peça teatral de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, tem uma célebre e marcante frase: “Não sei, só sei que foi assim”. Por ser um personagem cômico e peculiar, a sua caricatura serve de exemplo para os exageros de brasileiros que contam causos e não têm como explicar o fenômeno. É a ressurgência do “mito” na comédia nordestina e no folclore brasileiro, ressaltando que nem todo mito é prejudicial à construção do pensamento. A situação atual da automedicação para tratamento prévio contra a infecção por coronavírus ganha ares literários devido a forma como é aplicado e direcionado por autoridades, setores da área da saúde e grupos nas redes sociais. Quando a lógica por trás da indicação da automedicação ocorre com intuito enganador e de desinformação da população.
Para demonstrar a inversão lógica e o incentivo sem escrúpulos na automedicação, tem circulado em grupos de redes sociais o seguinte argumento: “Brasileiro toma por conta própria, Rivotril, termogênico, analgésicos, Sibutramina, Trembolona, Durateston, Stanozolon, Viagra, remédio para pressão, relaxante muscular, ANABOLIZANTES, anti-inflamatórios, Fuma igual um FDP, usa drogas, toma CITOTEC, pílulas do dia seguinte, etc. Mas acha um absurdo usar cloroquina no tratamento da COVID-19, pois o remédio tem efeitos colaterais.!”(sic)
Dessa forma, de acordo com o argumento (autor desconhecido) e sem as fontes utilizadas para a pesquisa, resta a necessidade de revisar os fatos (fact checking). A desconstrução dele passa pela análise da lógica assumida pelo autor, nesse caso a falácia lógica da inversão do acidente que explica o fenômeno da generalização de um argumento utilizando como base uma causa específica tendenciosa. Como exemplo da inversão lógica, podemos pensar numa situação fictícia em que um paciente terminal tomasse morfina e tivesse como resultado a melhora de seu estado geral, então como conclusão lógica teríamos que todo paciente deveria tomar morfina porque o efeito é benéfico para o paciente. Sendo assim, partindo-se de um fato específico (morfina para um paciente terminal) pode-se generalizar o argumento (morfina para todo paciente terminal). Contudo, esse tipo de lógica é interessante para se criar hipótese que depois podem ser testadas seguindo protocolos rígidos. Então, teríamos a conclusão se a morfina seria mesmo benéfica. Mas, vamos deixar a ficção do teste com morfina em paciente terminal de lado e checar o argumento em questão. No argumento do autor, como o brasileiro se automedica (fato específico e tendencioso) então pode ser generalizado para a automedicação com cloroquina (generalização). Ou seja, a confirmação de um erro é o argumento para a continuidade do erro.
Voltando ao relato do caso, o argumento proposto é de que como o brasileiro utiliza medicamentos sem prescrição, qual seria o problema em usar cloroquina? De fato, o brasileiro consome em grande quantidade medicamentos sem a devida prescrição. Mas, a solução para um erro não é a continuidade do mesmo, sendo assim, não é razoável aceitar que a automedicação em excesso deva ser o argumento para o consumo de medicamentos sem os devidos ensaios clínicos. Apoiado no pensamento do brilhantíssimo físico Stephen Hawking, que menciona o maior inimigo do conhecimento não ser a ignorância, mas a ilusão do conhecimento. Então, fica pressuposto que não podemos fechar os olhos para o conhecimento sobre os efeitos colaterais da cloroquina, ou até mesmo de qualquer outro medicamento, sendo que todos apresentam um potencial efeito colateral. Sendo que com esse tipo de argumento qualquer outro medicamento que apresente uma eficácia mínima seria possível no combate da COVID-19, mesmo sem o devido ensaio clínico, tanto que a ivermectina transformou-se na nova bala de prata da vez, e despertou um alerta da ANVISA em uma nota pública, relatando a falta de segurança no uso indiscriminado do medicamento, alertando ainda que este é de uso exclusivo veterinário. Cabendo aqui uma reflexão, os efeitos colaterais da ivermectina são menos graves que o da cloroquina, e mesmo assim o órgão de vigilância sanitária não se pronunciou a respeito dessa até o momento. Seria necessário que também houvesse um posicionamento oficial.
Apesar do efeito cômico no argumento do autor sobre o uso indiscriminado de medicamentos pelos brasileiros que se negam em usar cloroquina, resta a comparação dele com o personagem Chicó, que mesmo não sabendo como as coisas acontecem, sabe que é assim, e continua replicando a mensagem. Esperamos que esse “causo” sirva como exemplo do que não deve ser copiado e replicado nas redes sociais. A velha máxima ainda continua valendo, em caso de necessidade consulte um médico.