Texto: Fernando Kokubun
Revisão: Marcelo Bragatte, @marcelobragatte/ Renata Bernardes David, @reb_ernardes
A pandemia da COVID-19, alterou de forma drástica a rotina na maioria dos países, e devido a sua alta transmissibilidade e grande número de óbitos em curto espaço de tempo, existem numerosos estudos sobre o vírus SARS-CoV-2, responsável pela doença. Estes estudos têm como principal meta, a produção de um medicamento ou uma vacina para imunizar a população da doença (veja por exemplo os textos em [1] e [2]). Atualmente, a única solução eficaz que conhecemos é o isolamento, medida que impede a ocorrência de um alto número de casos infectados, o que levaria ao colapso do sistema de saúde. Nesta linha, uma frente de estudos é a das análises estatísticas de casos confirmados e óbitos, um método de explicação sobre a disseminação do vírus, e que também permite que possamos, por exemplo, ter uma perspectiva de quando será possível relaxar o isolamento, o que infelizmente parece estar muito distante. Nesses estudos, de como o vírus propaga, foram analisados vários fatores, um deles a influência da temperatura na multiplicação do vírus SARS-CoV-2, (veja por exemplo [5]) , com o objetivo de entender como a taxa de propagação é influenciada pelas condições climáticas, em particular da temperatura e umidade. Essa influência da temperatura tem objetivos diferentes do que vamos tratar a seguir.
Para compreender a diferença citada acima, é preciso ressaltar uma outra frente: a pesquisa do vírus SARS-CoV-2 para entender suas características. Para realizar estes estudos, e considerando os riscos , os laboratórios envolvidos devem satisfazer alguns critérios de biossegurança, para não expor as pessoas que trabalham nos locais a uma contaminação perigosa (veja as recomendações da Organização Mundial da Saúde em [3] ). Dependendo do tipo de análise a ser realizada, o vírus precisa estar inativo, para não contaminar o local de trabalho.
Em um estudo disponível em preprint (para entender as diferenças entre trabalho publicado e preprint, veja o glossário no final), B. Pastorino e colaboradores [4] analisaram diferentes métodos para a preparação de uma amostra de SARS-CoV-2 para serem utilizadas na análise de propriedades do vírus , e como citado anteriormente, precisam estar inativos. De acordo com os autores :
“Automated NA extraction is generally performed outside of biosafety cabinets which demands that only non-infectious samples must be loaded. To achieve this objective, a prior inactivation step under appropriate biosafety conditions is an absolute requirement.”
(Em uma tradução livre “A extração automática da informação genética (NA extraction) é realizada fora das cabines de biossegurança, demandando que apenas amostras não infecciosas sejam utilizadas. Para alcançar este objetivo, uma etapa preliminar de desativação em condições de biossegurança apropriadas é um requisito fundamental.”)
Uma motivação para esses estudos, é a demanda futura que deve vir, para realizar análises sorológicas para a detecção de anticorpos em amostras de sangues, para verificar com mais precisão o total de infectados pela SARS-CoV-2 (de acordo com os autores “Soon or later during the COVID-19 pandemic, serological tests will be used for diagnostics and for seroprevalence studies aiming at measuring the penetration of SARS-CoV-2 infection at population level.”)
O grupo comparou os procedimentos utilizando protocolos com diferentes soluções tampão de lise (veja o glossário para seu signifcado) e procedimentos utilizando protocolos usando temperaturas altas para desativar os vírus , ou ainda uma combinação dos dois protocolos (tampão e temperatura) para quem estiver interessado em detalhes, ver [4]. Aqui neste texto, vamos nos concentrar na questão da temperatura.
Para analisar o protocolo de aquecimento na inativação dos vírus, os autores consideraram três protocolos: (1) aquecimento de 56⁰C por 30 minutos; (2) aquecimento de 60⁰C por 60 minutos e (3) aquecimento por 92⁰ C por 15 minutos. Na discussão dos resultados dos processos de aquecimento, os autores afirmam que os três protocolos reduzem dentro de um fator aceitável a atividade da amostra com vírus, mas o protocolo de 92⁰ C por 15 minutos foi considerado o procedimento mais eficiente (acima de 20%) do que os outros dois protocolos, quando a carga viral inicial não é muito grande. Para casos de alta carga viral inicial, o protocolo com maior temperatura se torna o mais confiável. Mas ressaltam que devido à redução de RNA disponível para análise , para alguns casos a amostra ficaria inadequada para futuras análises quando usada a temperatura mais elevada, e nestes casos a recomendação dos autores é a utilização de uma solução tampão de lise.
E qual seria a importância desse resultado (se confirmado) para pessoas fora do ambiente do laboratório? Possivelmente nenhuma, mas serve de alerta que lavar utensílios apenas com água morna não é um processo eficiente, e nem tomar banho com água quente (a temperatura da água em um banho dificilmente atinge temperaturas acima de 50⁰ e não sendo recomendado temperaturas maiores e muito menos banhos prolongados). Sendo assim, é fundamental a utilização adequada de detergentes para eliminar os vírus.
E para cozinhar alimentos? Partindo da hipótese que os alimentos foram devidamente higienizados, a questão da temperatura passa a ser irrelevante, sendo o mais importante SEMPRE higienizar os alimentos e SEMPRE higienizar as mãos antes e depois de manipular os alimentos e as superfícies nas quais são preparados os alimentos.
COVID-19: é a doença causada pelo novo coronavírus.
preprint: é o artigo antes de ser aceito para publicação, isto é , não foi ainda avaliado pelos revisores de alguma revista científica.
Tampão de lise: é o nome dado para o produto utilizado para retirar material genético de um objeto em estudo (no caso o vírus SARS-CoV-2). Um tipo de tampão de lise, são detergentes específicos, cuja função é semelhante ao sabão/detergente que utilizamos para higienizar as nossas mãos. O termo lise, tem origem grega, significando dividir ou decompor.
SARS-CoV-2: o vírus responsável pela doença COVID-19.
[1] Cientistas brasileiros estão desenvolvendo vacina contra novo coronavírus. E. Alisson, 15 de março de 2020, Agência Fapesp. http://agencia.fapesp.br/cientistas-brasileiros-estao-desenvolvendo-vacina-contra-novo-coronavirus/32743/
[2] We haven’t identified any new drugs for severe covid-19 cases yet. ML. Page, 24 Março 2020, New Scientist. https://www.newscientist.com/article/2238491-we-havent-identified-any-new-drugs-for-severe-covid-19-cases-yet/#ixzz6KFqNVHon ;
How soon will we have a coronavirus vaccine? The race against covid-19. C. Arnold, New Scientist, 18 de março de 2020. https://www.newscientist.com/article/2237742-how-soon-will-we-have-a-coronavirus-vaccine-the-race-against-covid-19/#ixzz6KFwg5SBE
[3] Laboratory biosafety guidance related to coronavirus disease 2019 (COVID-19), World Health Organization, 12 de Fevereiro de 2020. https://apps.who.int/iris/handle/10665/331138
[4] Evaluation of heating and chemical protocols for inactivating SARS-CoV-2. B. Pastorino et all; 11 de abril de 2020. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.04.11.036855v1.full
[5] Stability of SARS-CoV-2 in different environmental conditions. AW.H. Chin et all, seção de correspondência, Lancet Microbe, 22 de abril de 2020. https://doi.org/10.1016/S2666-5247(20)30003-3