Como estes modos de raciocinar nos ajudam (e atrapalham) no entendimento da pandemia?
Autor: Isaac Schrarstzhaupt (Twitter: @schrarstzhaupt / Instagram: @isaacdata)
Revisores: Rute Maria Gonçalves de Andrade (@rutemga2)/ Luciana Santana (lucfsantana1812)
Imagem: Christophe Vorlet (The Chronicle Review, 2010 – Todos os direitos reservados).
Nestes mais de 170 dias de convivência com esta doença, temos visto dados e mais dados, informações de todos os tipos, por todos os lados, e percebemos a bagunça que isso faz na cabeça das pessoas. Tal fato nos faz perceber que um dos trabalhos importantes nessa pandemia é o de ajudar as pessoas a interpretar corretamente os dados, e não apenas jogá-los em gráficos de vários tipos para que cada um entenda de forma diferente, de acordo com sua bagagem cognitiva.
Pensando nisso, e vendo a enxurrada de interpretações diferentes (infelizmente, algumas delas com falhas), vamos dialogar sobre alguns conceitos de estatística bem interessantes?
O nosso cérebro, proporcionalmente em relação aos outros órgãos, consome mais energia. Ele corresponde a cerca de 2,5% da massa total do corpo, mas, em contraste a isto, em repouso, ele já consome cerca de 20% do oxigênio e da glicose (que transforma em ATP) totais (1).
E o nosso corpo, por padrão, não foi feito para GASTAR energia, mas sim, poupá-la. Ninguém vê um leão fazendo esteira após conquistar a caça. Normalmente, ele fica lá, deitado, e até deve achar estranho ver os humanos se exercitando após conseguirem “a caça”.
Sabendo então que o cérebro consome muita energia, e que nós estamos programados para poupá-la, como fazemos isso, então? Aí entram dois fatores:
Nós, seres humanos, aprendemos através dos nossos “neurônios espelho” (2) que são ativados via observação. Observamos, entendemos e guardamos em nossa “bagagem cognitiva” para que depois, quando confrontados pela mesma situação, possamos compará-la com o que temos armazenado.
Por que uma pessoa (ou mesmo um animal) que sofreu abusos se encolhe quando alguém chega perto e abre os braços para abraçá-la? Essa situação triste é causada, justamente, porque ela compara a abertura de braços com sua bagagem cognitiva e, da forma mais rápida possível, gastando o mínimo de energia, reage encolhendo o corpo.
Esse é o pensamento focado (3). Seguimos o caminho com o menor gasto de energia para chegar a uma conclusão, comparando a situação do momento com o que temos armazenado. Quanto mais registros temos em nossas bagagens cognitivas, mais material para comparação.
Se alguém mostrar um martelo e um prego para uma pessoa de 30 anos de idade, sem falar nada, provavelmente ela irá bater o martelo no prego, pois já tem isso em sua bagagem cognitiva. Se mostrar o mesmo martelo e prego para uma pessoa de um ano, talvez ela tente lamber o martelo e engula o prego, pois é o que tem dentro de sua bagagem cognitiva.
Já o pensamento difuso (3) é aquele que gasta bem mais energia, pois envolve o uso de caminhos diferentes dentro do cérebro e armazena novas situações dentro dessa bagagem cognitiva, ao invés de usar as que já existem.
Por que mencionar isso? Porque estamos enxergando esta dificuldade dia após dia, com a enxurrada de informações que são apresentadas a nós por diferentes fontes e, muitas destas informações, não vêm acompanhadas de interpretação. Desta forma, passamos a interpretar de acordo com nossa bagagem cognitiva e percebemos um interessante fenômeno: duas pessoas conseguem interpretar O MESMO GRÁFICO de formas opostas: uma diz que a epidemia está aumentando e outra que está caindo.
Como esses assuntos de gráficos e estatísticas são novos para muitas pessoas, precisamos ativar o pensamento difuso para adicionar novos conhecimentos.
Para quem teve paciência de chegar até aqui, uma brincadeira que normalmente ativa o pensamento difuso:
Seguindo adiante. Temos visto algumas dúvidas simples nas redes sociais, dúvidas vindas de quem tem uma formação consolidada e um histórico de carreira respeitável. Acreditamos que isso ocorre justamente por não estarem absorvendo e entendendo as informações com uso de análise mais difusa, ou seja, de maior consumo de energia. O que tem mais chance de ocorrer é justamente em uma “overdose” de informações como na situação em que estamos inseridos agora.
Um post que viralizou sobre isso contava a história do trabalho de Abraham Wald (4), na qual menciona que durante a segunda guerra mundial analisaram os aviões que retornavam da batalha para entender quais os locais da fuselagem que eram mais atingidos para, então, reforçar a blindagem destes aviões nesses locais.
A abordagem de Wald foi a oposta! Ele mostrou que a blindagem tinha de ser feita justamente nos locais em que o avião não era atingido, pois esses pontos eram os pontos realmente frágeis, que impediam os aviões de retornar.
Aplicando este conhecimento na pandemia da COVID-19, conseguimos observar claramente falha no pensamento. A COVID-19, por exemplo, é uma doença que possui algumas características bem específicas (5), tais como:
Isto faz com que qualquer análise observacional desta doença possa acionar a “bagagem cognitiva” de algumas pessoas (inclusive médicos) para encontrar possíveis relações (falhas) de causalidade.
Ora, se a taxa de cura sem medicação é de 80%, podemos observar a parcela dos infectados e identificar quais atitudes foram tomadas enquanto passavam por este processo, e anotar em um caderninho. Iremos descobrir, provavelmente, que:
Será que ficaríamos tentados a dizer que ir ao banheiro cura COVID-19 em 80% dos casos? Ou que dormir também cura a COVID-19 em 80% dos casos? Isso é uma falsa relação de causalidade, feita aqui de forma bem alegórica, para demonstrar o que ocorre quando não conseguimos interpretar.
O estudo observacional aciona justamente o nosso pensamento FOCADO, e foi o responsável, na medicina, por terapias como a sangria (trocar o sangue da pessoa para a doença ir embora) ou como a lobotomia (cortar as vias cerebrais que dão acesso ao lobo pré frontal e ao tálamo).
Não podemos esquecer que a lobotomia (6) deu o PRÊMIO NOBEL ao seu criador. Era uma cura, naquele momento, aceita pela comunidade!
E então chega o método científico, que é mais demorado, possui percalços, mas permite que se chegue a soluções que não sejam travadas pela nossa limitação humana do pensamento focado e da poupança de energia.
Em um teste duplo cego e randomizado de um medicamento, por exemplo, nem o paciente e nem o médico sabem o que está sendo dado naquele momento. É entregue um medicamento inócuo (placebo) com o medicamento a ser testado para uma amostra aleatória de uma população, e ninguém sabe, apenas os pesquisadores. Justamente por isso, uma pesquisa como essa necessita ser submetida a um comitê de ética para garantir que tudo esteja sendo feito sem viés e respeitando os princípios da bioética.
Quando falamos em viés, não estamos querendo, necessariamente, dizer intenções escusas, mas sim o viés natural humano de poupar energia cerebral e chegar a conclusões de forma mais rápida , como já explicado acima.
Existem inúmeros casos de pacientes que se curaram de doenças sérias tomando apenas placebo, ou seja, um comprimido de farinha. Imagine então em uma doença como a COVID-19 que possui um potencial de cura espontânea de 80%?
Poderíamos mencionar também os comentários que lemos sobre as ações de prefeituras, governos estaduais e federal estarem 100% do tempo com intenções macabras, e criando teorias para acabar com a população. Não estamos dizendo que isso tem zero chances de acontecer, mas sabemos que em 99,99% dos casos, a explicação é sempre a mais simples, e acaba sendo falta de conhecimento de quem falou, pressa na hora de analisar, pressão para entregar resultados. .O nome disso é “navalha de Occam/Ockham”. (7) Se não há evidências, a chance da afirmação ser falsa é grande.
Enfim, acreditamos ser de extrema importância esse tipo de conhecimento, especialmente em um momento em que ocorrem tantos flertes com teorias da conspiração que acabam por atrapalhar muito a sociedade no combate à pandemia.
Ah, e claro: a resposta do enigma: O taco custa R$ 1,05, e bola R$ 0,05. Normalmente o pensamento focado nos leva a crer que a bola custa R$ 0,10 e o taco R$ 1,00. Ao acionar o pensamento difuso, conseguimos capturar a informação de que o taco custa R$ 1,00 a mais do que a bola, e assim chegamos na resposta correta.
Fontes: