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Pensamento focado e pensamento difuso

02.10.2020

Por: Mell

Como estes modos de raciocinar nos ajudam  (e atrapalham) no entendimento da pandemia?

Autor: Isaac Schrarstzhaupt (Twitter: @schrarstzhaupt / Instagram: @isaacdata)

Revisores: Rute Maria Gonçalves de Andrade (@rutemga2)/ Luciana Santana (lucfsantana1812)

Imagem: Christophe Vorlet (The Chronicle Review, 2010 – Todos os direitos reservados).

Nestes mais de 170 dias de convivência com esta doença, temos visto dados e mais dados, informações de todos os tipos, por todos os lados, e percebemos a bagunça que isso faz na cabeça das pessoas. Tal fato nos faz perceber que um dos trabalhos importantes nessa pandemia é o de ajudar as pessoas a interpretar corretamente os dados, e não apenas jogá-los em gráficos de vários tipos para que cada um entenda  de forma diferente, de acordo com sua bagagem cognitiva.

Pensando nisso, e vendo a enxurrada de interpretações diferentes (infelizmente, algumas delas com falhas), vamos  dialogar sobre  alguns conceitos de estatística bem interessantes?

O nosso cérebro, proporcionalmente em relação aos outros órgãos, consome mais energia. Ele corresponde a cerca de 2,5% da massa total do corpo, mas, em contraste a isto, em repouso, ele já consome cerca de 20% do oxigênio e da glicose (que transforma em ATP) totais (1).

E o nosso corpo, por padrão, não foi feito para GASTAR energia, mas sim, poupá-la. Ninguém vê um leão fazendo esteira após conquistar a caça. Normalmente, ele fica lá, deitado, e até deve achar estranho ver os humanos se exercitando após conseguirem “a caça”. 

Sabendo então que o cérebro consome muita energia, e que nós estamos programados para poupá-la, como fazemos isso, então? Aí entram dois fatores: 

  • Modelos de pensamento (focado e difuso);
  • “Bagagem cognitiva”.

Nós, seres humanos, aprendemos através dos nossos “neurônios espelho” (2) que são ativados via observação. Observamos, entendemos e guardamos em nossa “bagagem cognitiva” para que depois, quando confrontados pela mesma situação, possamos compará-la  com o que temos armazenado.

Por que uma pessoa (ou mesmo um animal) que sofreu abusos se encolhe quando alguém chega perto e abre os braços para abraçá-la? Essa situação triste é causada, justamente, porque ela compara a abertura de braços com sua bagagem cognitiva e, da forma mais rápida possível, gastando o mínimo de energia, reage encolhendo o corpo.

Esse é o pensamento focado (3). Seguimos o caminho com o menor gasto de energia para chegar a uma conclusão, comparando a situação do momento  com o que temos armazenado. Quanto mais registros temos em nossas bagagens cognitivas, mais material para  comparação. 

Se alguém mostrar um martelo e um prego para uma pessoa de 30 anos de idade, sem falar nada, provavelmente ela irá bater o martelo no prego, pois já tem isso em sua bagagem cognitiva. Se mostrar o mesmo martelo e prego para uma pessoa de um ano, talvez ela tente lamber o martelo e engula o prego, pois é o que tem dentro de sua bagagem cognitiva.

Já o pensamento difuso (3) é aquele que gasta bem mais energia, pois envolve o uso de caminhos diferentes dentro do cérebro e armazena novas situações dentro dessa bagagem cognitiva, ao invés de usar as que já existem.

Por que mencionar isso? Porque estamos enxergando esta dificuldade dia após dia, com a enxurrada de informações que são  apresentadas a nós por diferentes fontes e, muitas destas informações, não vêm acompanhadas de interpretação. Desta forma, passamos a  interpretar de acordo com nossa bagagem cognitiva e percebemos um interessante fenômeno: duas pessoas conseguem interpretar O MESMO GRÁFICO de formas opostas: uma diz que a epidemia está aumentando e outra que está caindo.

Como esses assuntos de gráficos e estatísticas são novos para muitas pessoas, precisamos ativar o pensamento difuso para adicionar novos conhecimentos. 

Para quem teve paciência de chegar até aqui, uma brincadeira que normalmente ativa o pensamento difuso:

  • Um taco e uma bola, juntos, custam R$ 1,10. O taco custa R$ 1,00 a mais que a bola. Quanto custa a bola? Resposta ao final do texto!

Seguindo adiante. Temos visto algumas dúvidas simples nas redes sociais, dúvidas vindas de quem tem uma formação consolidada e um histórico de carreira respeitável. Acreditamos que isso ocorre justamente por não estarem absorvendo e entendendo as informações com uso de   análise mais difusa, ou seja, de maior consumo de energia. O que tem mais chance de ocorrer é justamente em uma “overdose” de informações como na situação em  que estamos inseridos agora.

Um post que viralizou sobre isso contava a história do trabalho de Abraham Wald (4), na qual  menciona que durante a segunda guerra mundial analisaram os aviões que retornavam da batalha para entender quais os locais da fuselagem que eram mais atingidos para, então, reforçar a blindagem destes aviões nesses locais. 

A abordagem de Wald foi a oposta! Ele mostrou que a blindagem tinha de ser feita justamente nos locais em que o avião não era atingido, pois esses pontos eram os pontos realmente frágeis, que impediam os aviões de retornar. 

Aplicando este conhecimento na pandemia da COVID-19, conseguimos observar claramente  falha no pensamento. A COVID-19, por exemplo, é uma doença que possui algumas características bem específicas (5), tais como:

  • Taxa de letalidade média entre 0,7 e 1,3%;
  • Taxa de cura espontânea de 80%;
  • Taxa de hospitalização clínica de 15%;
  • Taxa de hospitalização em UTI de 4,5%;

Isto faz com que qualquer análise observacional desta doença possa acionar a “bagagem cognitiva” de algumas pessoas (inclusive médicos) para encontrar possíveis relações (falhas) de causalidade.


Ora, se a taxa de cura sem medicação é de 80%, podemos observar a parcela dos infectados e identificar quais atitudes foram tomadas enquanto passavam por este processo, e anotar em um caderninho. Iremos descobrir, provavelmente, que:

  • 100% deles foram ao banheiro;
  • 100% deles comeram alguma coisa;
  • 100% deles ficaram sentados por um tempo;
  • 100% deles dormiram neste período;

Será que ficaríamos tentados a dizer que ir ao banheiro cura COVID-19 em 80% dos casos? Ou que dormir também cura a COVID-19 em 80% dos casos? Isso é uma falsa relação de causalidade, feita aqui de forma bem alegórica, para demonstrar o que ocorre quando não conseguimos interpretar.

O estudo observacional aciona justamente o nosso pensamento FOCADO, e foi o responsável, na medicina, por terapias como a sangria (trocar o sangue da pessoa para a doença ir embora) ou como a lobotomia (cortar as vias cerebrais que dão acesso ao lobo pré frontal e ao tálamo).

Não podemos esquecer que a lobotomia (6) deu o PRÊMIO NOBEL ao seu criador. Era uma cura, naquele momento, aceita pela comunidade!

E então chega o método científico, que é mais demorado, possui percalços, mas permite que se chegue a soluções que não sejam travadas pela nossa limitação humana do pensamento focado e da poupança de energia.

Em um teste duplo cego e randomizado de um medicamento, por exemplo, nem o paciente e nem o médico sabem o que está sendo dado naquele momento. É entregue um medicamento inócuo (placebo) com o medicamento a ser testado para uma amostra aleatória de uma população, e ninguém sabe, apenas os pesquisadores. Justamente por isso, uma pesquisa como essa necessita ser submetida a  um comitê de ética para garantir que tudo esteja sendo feito sem viés e respeitando os princípios da bioética. 

Quando falamos em viés, não estamos querendo, necessariamente, dizer intenções escusas, mas sim o viés natural humano de poupar energia cerebral e chegar a conclusões de forma mais rápida , como já explicado acima.

Existem inúmeros casos de pacientes que se curaram de doenças sérias tomando apenas placebo, ou seja, um comprimido de farinha. Imagine então em uma doença como a COVID-19 que possui um potencial de cura espontânea de 80%?

Poderíamos mencionar também os comentários que lemos sobre as ações de prefeituras, governos estaduais e federal estarem 100% do tempo com intenções macabras, e criando teorias para acabar com a população. Não estamos dizendo que isso tem zero chances de acontecer, mas sabemos que em 99,99% dos casos, a explicação é sempre a mais simples, e acaba sendo falta de conhecimento de quem falou, pressa na hora de analisar, pressão para entregar resultados. .O nome disso é “navalha de Occam/Ockham”. (7) Se não há evidências, a chance da afirmação ser falsa é grande. 

Enfim, acreditamos ser de extrema importância esse tipo de  conhecimento, especialmente em um momento em que ocorrem tantos flertes com teorias da conspiração que acabam por atrapalhar muito a sociedade no combate à pandemia.

Ah, e claro: a resposta do enigma: O taco custa R$ 1,05, e bola R$ 0,05. Normalmente o pensamento focado nos leva a crer que a bola custa R$ 0,10 e o taco R$ 1,00. Ao acionar o pensamento difuso, conseguimos capturar a informação de que o taco custa R$ 1,00 a mais do que a bola, e assim  chegamos na resposta correta.

Fontes:

  1. https://www.health.harvard.edu/diet-and-weight-loss/calories-burned-in-30-minutes-of-leisure-and-routine-activities?fbclid=IwAR1i5vyNvOPw2rf0qbUIx5nnEUknpoYBxkImSBwhot_QG21gBqisg9LTb7A
  2. https://www.scielo.br/scielo.php?pid=%22S0103-65642006000400007%22&script=sci_arttext
  3. https://www.amazon.com.br/Aprendendo-Aprender-Matem%C3%A1tica-Ci%C3%AAncias-Qualquer/dp/8586622451/ref=asc_df_8586622451/?tag=googleshopp00-20&linkCode=df0&hvadid=379713206304&hvpos=&hvnetw=g&hvrand=14480008576658240684&hvpone=&hvptwo=&hvqmt=&hvdev=c&hvdvcmdl=&hvlocint=&hvlocphy=1001672&hvtargid=pla-1003008359672&psc=1&fbclid=IwAR1i5vyNvOPw2rf0qbUIx5nnEUknpoYBxkImSBwhot_QG21gBqisg9LTb7A
  4. http://onlinestatbook.com/2/research_design/sampling.html
  5. https://www.nature.com/articles/d41586-020-01738-2?fbclid=IwAR1i5vyNvOPw2rf0
  6. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lobotomia?fbclid=IwAR1i5vyNvOPw2rf0qbUIx5nnEUknpoYBxkImSBwhot_QG21gBqisg9LTb7A
  7. https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Ockham?fbclid=IwAR1i5vyNvOPw2rf0qbUIx5nnEUknpoYBxkImSBwhot_QG21gBqisg9LTb7A#cite_note-2
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