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Nos tempos do imperador: a varíola e a cólera

18.05.2020

Por: Mell

Autor: Eduardo Luis Flach Käfer1 | Revisão: Eduardo Haas

O presente texto faz parte da coletânea “Sete Males”: Histórias das Doenças, Epidemias e Pandemias no Brasil, organizada por Eduardo Cristiano Hass da Silva, vinculada à Rede Análise COVID – 19.

1 Mestre e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor nas redes municipais ensino de Campo Bom e Montenegro.



Cirurgião negro colocando ventosas. Jean Baptiste Debret, 1826 Retirado de: <http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/casa-de-oswaldo-cruz-oferece-curso-de-inverno-sobre-corpo-e-cidadania-na-historia-da-saude-no-brasil/>

           Evento fixado na memória nacional, o grito de “Independência ou Morte” dado por d. Pedro I é considerado o gesto mais dramático de nossa emancipação política. Trágica ironia, os anos iniciais do novo país foram marcados pela morte respaldada pelo Estado. A continuidade do tráfico de africanos escravizados, o extermínio indígena, as guerras contra inimigos externos e a “pacificação” interna são algumas de suas causas.

            Mais difíceis de evitar, no entanto, as epidemias de varíola e cólera são exemplos de como o Estado imperial estava distante de seus habitantes. Enquanto a primeira doença manifestou-se em diferentes episódios no período colonial, tendo continuidade no império, o flagelo da cólera assolou o país na década de 1850. É necessário salientar que nesse caso a distância governamental não significava ausência. O combate à varíola é um bom exemplo. A primeira aplicação de vacina no Brasil teria se dado por iniciativa individual de Felisberto Caldeira Brant, futuro marquês de Barbacena, ainda em 1804. Ele mandou a Portugal sete crianças escravizadas para servirem como cobaias. Acompanhando as crianças, um médico aprendeu a técnica e, ao retornar, aplicou-a nos outros cativos. Anos depois, no período em que a corte portuguesa esteve no Brasil, dom João demonstrava grande entusiasmo pela vacinação e apoiou a criação da primeira Junta Vacínica, em 1811. O trabalho dos vacinadores teve continuidade no Brasil independente. Os anúncios de venda de escravizados, por exemplo, traziam consigo informações de que estes já estavam imunizados (Chalhoub, 1996). 

            O distanciamento do Estado imperial em relação à população era visível na falta de sensibilidade em compreender a rejeição à vacina contra a varíola. Além da pouca ampliação das medidas de prevenção, os agentes de saúde e as administrações municipais moviam-se apenas de acordo com seus critérios técnico-científicos, estando alheios ao imaginário popular. O incômodo causado pela nova técnica, a necessidade de revacinação após determinado período, as explicações religiosas para o aparecimento das doenças, generalizadas na população, não eram maiores entraves do que o preconceito dos agentes do Estado, notável em seus relatórios.

            Enquanto a varíola poderia ser considerada mais democrática, por ter vitimado também os abastados, no caso da cólera, a doença atingiu massivamente os mais vulneráveis. A epidemia teve início no ano de 1855. Acredita-se que a contaminação teve início com a chegada da embarcação Deffensor, em Belém, essa partiu de Portugal com 322 embarcados quando sua capacidade era de apenas 222 passageiros. O acúmulo de pessoas somado às péssimas condições de viagem facilitou a propagação da doença. Quando a embarcação chegou em Belém, em 15 de maio, somava 35 óbitos em 18 dias de viagem.

            Durante o combate à doença, a ausência de diálogo entre os agentes do Estado e os doentes foi notório. Em 1856, no Recife, essa divergência chegou a se materializar em ataques da população pobre e negra contra os médicos brancos. O episódio que teria desencadeado essa tensão foi a ordem de prisão dada a Pai Manoel, africano que, por meio de sua sabedoria tradicional, tratava os doentes da cólera. Somava-se a isso a alta mortalidade da população pobre da região, levando ela a acreditar que os médicos e seus tortuosos procedimentos estariam matando propositalmente esse contingente populacional.

            No Grão-Pará a falta de orçamento da província e sua distância do governo central também fez com que os habitantes locais recorressem a sabedoria popular para tratar os enfermos da cólera. A proximidade da floresta e o conhecimento das propriedades medicinais das plantas, propiciou bons resultados no combate à moléstia. O uso do sumo de limão e da japana (erva tradicional da Amazônia) aparecem em vários relatos da época como medidas eficazes contra a cólera. A medicina científica, naquele caso, chegou a reconhecer seus benefícios, porém dava-lhe roupagens técnicas, insinuando que seu uso já era previsto em antigos manuais (Beltrão, 2000).

            A história das doenças nos ajuda a conhecer também um pouco sobre a sociedade enferma. Nas linhas do texto acima, percebemos que a varíola e a cólera no Brasil imperial davam indícios não somente da sabida desigualdade no campo material e civil, como também das divisões entre sensibilidades e saberes. Os representantes do Estado, portadores de uma visão hierárquica da sociedade, pouco se esforçaram para enxergar os enfermos para além de suas moléstias.

Referências:

BELTRÃO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais da saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v. 6, set. 2000. pp 833-66. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000500005>. Acesso em 20 abr. 2020.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Companhia das Letras, São Paulo: 1996.

Para saber mais:

BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A terrível moléstia: vacina, epidemia, instituições e sujeitos : a história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846-1874). 167 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/116631. Acesso em: 20/042020.

GAZETA, Arlene Audi Brasil. Uma história do combate à varíola no Brasil: do controle à erradicação. 2006. 218 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/6139. Acesso em: 20/042020.

 

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