Entenda o tempo recorde na aprovação das vacinas e, porque devemos confiar nelas.
Autores: Larissa Brussa Reis (@laribrussa); Mateus Falco (@mateuslfalco)
Revisores: Rute Maria Gonçalves-de-Andrade (@rutemga2); Melissa Markoski (@melmarkoski), Mellanie F. Dutra (@mellziland)
A pandemia da COVID-19 marcou profundamente o início dessa nova década. Iniciamos o ano de 2020 com diversos surtos de infecção pelo novo coronavírus em diferentes países, que desencadearam na pandemia que estamos enfrentando. Nossas rotinas mudaram completamente, uma vez que para esta infecção ainda não há tratamento específico e nem tem sido possível um controle epidemiológico em nível global. Uma das principais medidas adequadas para tentar frear sua propagação foi a implementação do distanciamento físico. Ao adotar essa medida, tivemos alterações completas em nossas rotinas diárias, que vão desde o uso da máscara de proteção e álcool 70% como acessórios indispensáveis, a adesão ao home office (trabalho feito de casa), chamadas de vídeo com colegas de trabalho, amigos e familiares estabelecendo assim encontros virtuais e o surgimento de palestras e debates transmitidos pelas redes sociais, e tantas outras lives. A diminuição da circulação de pessoas nas ruas fez com que todos nós voltássemos nosso foco para as vacinas que estão sendo desenvolvidas contra a doença, certos de que nossas vidas dependem dela para voltar a uma relativa normalidade.
No entanto, com a rápida ascensão das vacinas contra o SARS-CoV-2, muitas pessoas estão se sentindo inseguras com a questão de serem “as primeiras” a receber os novos compostos, mesmo que esses sejam aprovados pelos órgãos regulamentadores como FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos, EMA (European Medicines Agency) na Europa e a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Brasil. Na segunda quinzena de dezembro de 2020, tínhamos 12 vacinas em testes clínicos de fase 3, sendo uma delas a da farmacêutica Pfizer, já com aprovação emergencial para uso no Reino Unido, Estados Unidos , embora não tenha sido definido ainda nenhum acordo para a aquisição dessa vacina por parte do Ministério da Saúde e do Governo Federal. Ainda, os EUA implantaram em 15/05/2020 a Operation Warp Speed (Operação Embalamento Rápido, tradução livre) uma parceria público-privada com finalidade de acelerar o desenvolvimento, produção e distribuição das vacinas contra COVID-19. Essa operação deu suporte e agilidade para que as primeiras doses de vacina fossem aplicadas ainda em 2020.
Para um panorama sobre os desdobramentos dessas vacinas na fase 3, temos um texto excelente e regularmente atualizado com as novas informações sobre as vacinas candidatas. Nos próximos parágrafos vamos explicar um pouco sobre a segurança das vacinas e os motivos pelos quais o desenvolvimento delas esteja acontecendo tão rápido quando comparado a outras vacinas e medicamentos. Acompanhe conosco!
Fases de desenvolvimento das vacinas e o método científico
Para entender sobre a segurança de qualquer vacina ou medicamento, precisamos nos debruçar sobre três situações: as fases de estudo, os testes necessários para o seu desenvolvimento e o método científico que está na base de todo processo científico. Aqui na Rede Análise COVID-19 temos textos incríveis (desenvolvimento de vacinas e importância da vacinação), que descrevem detalhadamente as fases de testes que as vacinas passam antes de serem aprovadas e a necessidade do alcance da cobertura vacinal. A figura 1 é um resumo gráfico de todas as fases do paradigma tradicional. Em linhas gerais, temos uma fase inicial chamada exploratória, durante a qual novas moléculas ou tecnologias candidatas, que possam causar uma resposta imune, são identificadas por registros na literatura, análises de bioinformática ou em cultura de células (animais ou humanas), por exemplo.
Posteriormente à fase exploratória, ocorre a fase pré-clínica, que é responsável pelos primeiros testes da vacina candidata em modelos animais, como camundongos, ratos e chinchilas, que muitas vezes são criados, em condições específicas e regulamentadas chamadas de “condições de biotério”, especificamente para atender a algum projeto, como no caso do novo coronavírus. Essas espécies não se infectam naturalmente com esse vírus, sendo necessária a produção de animais transgênicos através de ferramentas de biotecnologia. Nesse exemplo é possível começar a identificar as estruturas que ajudam na velocidade de desenvolvimento em pesquisas científicas. Se revisitarmos brevemente o passado, lembraremos que há alguns anos ocorreram os primeiros surtos de SARS (do inglês Severe acute respiratory syndrome ou síndrome respiratória aguda grave), causados pela circulação do SARS-CoV, um “primo” do novo coronavírus. Devido a essa doença, em Julho de 2003, mais de 8 mil casos haviam sido reportados, com a doença apresentando uma taxa de mortalidade de cerca de 10% na província de Guangdong, na China. Desde então, os cientistas se preocuparam em criar modelos animais para entender sobre a patogênese da doença e o papel da infecção deste vírus em diferentes tecidos [1]. Neste artigo aqui publicado em 2008, foram obtidos camundongos transgênicos extremamente suscetíveis ao vírus. Esses camundongos, que tiveram seu DNA manipulado, receberam em seu material genético o gene humano para o receptor da enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2), a principal porta de entrada para o novo coronavírus nas células humanas. Dessa maneira, os animais passaram a produzir esse receptor de origem humana e se tornaram suscetíveis ao vírus e manifestaram o mesmo processo de infecção como nos humanos visto que o SARS-CoV-2 não é capaz de infectar os camundongos pela falta do receptor ACE2. A partir daí os cientistas foram aprimorando os modelos animais. Com a mesma porta de entrada, ficou fácil criar modelos animais suscetíveis também ao novo coronavírus [2,3,4]. Os camundongos transgênicos k18-hACE2, criados pelo Jackson Laboratory, inclusive chegaram a ter uma demanda mundial de reprodução muito alta para ser usado nos testes da fase pré-clínica das vacinas para COVID-19. A maneira como são obtidos esses animais e os experimentos de confirmação que eles se tornam suscetíveis à COVID-19 envolve muito estudo, trabalho e dedicação por parte dos cientistas envolvidos, além de grandes investimentos em tecnologia de ponta.
Após a verificação da segurança e a capacidade de criar uma resposta imune a partir dos compostos vacinais nos modelos animais na fase pré-clínica, outros aspectos, como farmacológicos (dose adequada para uma distribuição do composto vacinal nas nossas células) e toxicológicos (dose que causa toxicidade ou letalidade, por exemplo) são verificados, e só então alcançamos a fase clínica de avaliação da vacina em humanos. A fase clínica se divide em 3 etapas consecutivas; a passagem de uma etapa para a outra é feita com a confirmação dos resultados das etapas anteriores. Em todas as etapas os estudos passam por checagens, os participantes, cujo número aumenta de uma fase para outra, são investigados de perto na busca de dados sobre segurança, eficácia (ou seja, capacidade de promover proteção contra a doença) e avaliação de eventos adversos. Esses pré-requisitos precisam ser avaliados para que o estudo continue. Por isso, as paradas “estratégicas” que os estudos das vacinas para COVID-19 tiveram até aqui são tão importantes, como foi noticiado aqui, por exemplo. Essa é mais uma das provas que os estudos são confiáveis e estão sendo feitos sob critérios rigorosos.
Durante todas as etapas de testes para vacinas, o método científico é usado como base para toda essa construção. De forma bem resumida, o método científico é um conjunto de regras que são usadas na produção de um novo conhecimento científico ou na correção e evolução de determinado conhecimento já existente. Na maioria dos campos científicos, consiste em reunir evidências (provas obtidas através de uma sucessão de etapas) que devem ser passíveis de verificação e reprodutibilidade, com resultados confiáveis. Para muitos autores, o método científico nada mais é do que a lógica aplicada à ciência. Para obter o conhecimento através do método científico são necessárias algumas etapas básicas, que iniciam com a observação de algum fenômeno ou de alguma necessidade, os questionamentos do porque ele ocorre, como ocorre, quais fatores podem influenciar, entre outros. E por fim, a formulação de hipóteses que poderão ou não responder tais perguntas. Quando as hipóteses são criadas, partimos para a fase da ação, onde serão realizados experimentos para testar essas hipóteses, seguidos de coleta e avaliação dos resultados e uma conclusão a respeito da hipótese formulada. Dessa maneira, ao seguir os passos podemos ter um produto final livre de vieses (fatores que podem confundir ou alterar os resultados), com o produto final obtido, ele pode ser agora reproduzido em qualquer lugar do planeta, desde que sejam seguidos todos os passos e etapas necessárias, e assim validar a pesquisa. Esse sistema é muito parecido com uma auditoria. O método científico, portanto, pode ser encarado como uma “segurança” de que os estudos e experimentos realizados levam a uma conclusão sólida que pode ser reproduzida. Ele é o cerne de todo o desenvolvimento de uma nova vacina, assim como medicamentos e exames diagnósticos. A Figura 1 mostra o paradigma tradicional usado nesse desenvolvimento:
Figura 1 – Paradigma Tradicional no desenvolvimento de vacinas e medicamentos. As fases estão dispostas de modo linear em sequência. É possível verificar o longo processo de desenvolvimento e produção das vacinas em tempos não pandêmicos.
Mas como o método científico foi aplicado tão rápido para as vacinas contra COVID-19?
O questionamento sobre a velocidade no desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19 é um tema muito debatido, porém devemos analisar todo o encadeamento de fatos que levaram a esse processo acelerado. A Figura 2 mostra um resumo gráfico do paradigma pandêmico e as suas etapas, e pode ser comparada com as diferenças apresentadas na Figura 1. Um fator extremamente importante a ser ressaltado é que os próximos argumentos estão baseados na união de vários estudos e observações de pesquisadores e instituições, públicas ou privadas, direcionados ao combate da pandemia. Então, vamos a alguns deles:
1) A liberação de recursos financeiros foi feita de modo recorde para que não houvesse atraso no andamento de nenhuma pesquisa por falta de dinheiro.
2) Houve uma sobreposição dos estudos nas fases clínicas (1 e 2) com a intenção de acelerar o processo de desenvolvimento e a avaliação dos resultados [5]. As indústrias farmacêuticas iniciaram a produção das vacinas a partir dos resultados obtidos das fases 1 e 2, esse início imediato acelerou a viabilidade na produção da vacina; foi uma aposta de alto risco das empresas farmacêuticas, mas importante para a rapidez na entrega da vacina pronta.
3) Ainda, o grande número de voluntários disponíveis para os testes de segurança e eficácia dessas vacinas candidatas só foram possíveis pela urgência da crise de saúde e pela grande quantidade de pessoas infectadas devido à rápida circulação e transmissão do vírus em vários países, simultaneamente.
4) A aprovação mais rápida pelos órgãos reguladores de saúde foi outro importante fator para a rapidez, assim como a agilidade dos comitês de ética em revisar os protocolos e liberar sua execução. Se compararmos com as fases de desenvolvimentos explicadas no tópico anterior veremos que, devido a necessidade, ocorreu uma condensação do tempo, mas não nas etapas do desenvolvimento.
Figura 2 – Paradigma Pandêmico de desenvolvimento acelerado das vacinas. É possível verificar o encurtamento no tempo do processo e a sobreposição das fases de desenvolvimento e produção, diferentemente do tradicional. Nenhuma etapa foi omitida.
É preciso enfatizar que nenhuma etapa do processo de estudo e desenvolvimento foi transposta e nem feita de forma que deixasse lacunas. Um exemplo dessa rigidez dos estudos é que os resultados da fase 3 da vacina da Universidade Oxford/Astrazeneca, por exemplo, que apresentaram variação de dosagem aplicada nos voluntários, precisaram ser re-analisados. Sabemos que esse empenho mundial no combate a pandemia pode não ser o mesmo para outras doenças que surgirem, mas fica o exemplo de que a união de esforços, a liberação acelerada de recursos financeiros e incentivos à ciência básica levaram a essa conquista que já está sendo aplicada no braço humano em tempo recorde. Apesar da rapidez, muitos mecanismos para investimento, pesquisa e produção em larga escala devem ser estudados para que futuras epidemias tenham uma resposta rápida. Um exemplo é o CEPI, uma organização não governamental internacional que fomenta o desenvolvimento de vacinas para 5 tipos de patógenos que já causaram epidemias, como SARS/MERS, ebola, lassa, chikungunya e a doença “X”. Essa doença X é qualquer doença epidêmica emergente que possa surgir, como foi o caso da COVID-19. A ideia central desse projeto é desenvolver uma plataforma capaz de dar suporte ao desenvolvimento de vacinas a partir do sequenciamento do vírus até os testes clínicos em 16 semanas (4 meses) e com capacidade de produção da vacina em larga escala. O CEPI foi responsável por organizar os primeiros experimentos que encontraram primeiras respostas contra a COVID-19, no início da pandemia. A financiadora, em parceria com a Gavi e OMS, lideram a COVAX Facility, uma colaboração global inovadora para acelerar o desenvolvimento, a produção e o acesso equitativo aos testes, tratamentos e vacinas COVID-19, em um esforço para que a vacina seja entregue de forma igualitária a todos os países.
Retomando a pergunta inicial sobre “vacina feita às pressas?”, diante do exposto ao longo do texto, fica mais fácil de entender que a velocidade no desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus não foi inesperada. Além disso, existe uma movimentação com intuito de preparar a comunidade científica com recursos e estratégias no combate às epidemias, onde muito ainda precisa ser discutido e analisado para que essas estratégias sejam implementadas em um futuro próximo. Porém, o caminho que se apresenta no horizonte passa por esse esforço coletivo e mundial, principalmente pela necessidade da pesquisa básica. Esse tipo de pesquisa científica é demorada e necessita investimento de longo prazo. Contudo, no caso de uma urgência, como a que passamos, toda a aprendizagem básica acumulada pôde ser utilizada prontamente na resposta ao vírus que “parou o mundo”. Pensar na necessidade de uma resposta, a mais rápida possível, para uma crise de saúde mundial é o melhor caminho; negar isso deveria ficar fora de cogitação.
Conseguimos comparar dois paradigmas no desenvolvimento das vacinas: o tradicional e o pandêmico. Essas são as principais diferenças para a agilidade do processo, em meio a necessidade urgente da resposta mundial. Salientamos a importância da existência de organização internacional voltada para esse fim e a ajuda nos primeiros passos no desenvolvimento da vacina contra o SARS-CoV-2. Acrescentamos ainda, que existem várias formas de apresentação da proteína ao sistema imune por meio das vacinas, que foram mencionadas para demonstrar a junção de vários aspectos científicos utilizados nesse momento particular da história da humanidade. Todas essas tecnologias passaram pela pesquisa básica e aprendizagem contínua, onde, talvez, se a pandemia tivesse acontecido 5 anos antes, não teríamos a resposta como nos é apresentada hoje. A busca para a vacina contra os coronavírus começou após a primeira epidemia de SARS (2003), continuou com o surgimento da MERS (2012), teve a alavancagem pelo surgimento da epidemia do vírus Ebola (2013), até encontrar o ponto de convergência que é a atual pandemia pelo SARS-CoV-2 (2020).
A nossa perspectiva, como parte integrante da comunidade científica e divulgadora de ciência, é a maior aproximação e engajamento popular diante de todos os passos científicos e o investimento contínuo em pesquisas. É importante que se busque material informativo confiável e existem muitos! A análise crítica do conteúdo divulgado, o respeito ao não divulgar informação sem a devida análise criteriosa ou consulta em grupos que divulgam conteúdo de qualidade precisam ser seguidos. Do contrário, pensar que o desenvolvimento acelerado das vacinas é uma forma de exterminar a população mundial, recai em uma visão amedrontada e incompreensível. É importante ressaltar que o esforço mundial em desenvolver uma vacina em 10 meses tem como principal interesse proteger a população e barrar a circulação do vírus, ou seja, diminuir o “estrago” ocorrido nesse ano de 2020. Os números de infectados e óbitos pelo mundo dão razão à ciência e não a incompetência, onde uma resposta ágil e efetiva é a nossa esperança. Na era da COVID-19, ninguém está a salvo enquanto todos não estiverem seguros e vacinados. Desejamos que o ano de 2021 seja de combate direto ao vírus e não a ciência.
Referências
[1] https://jvi.asm.org/content/jvi/82/15/7264.full.pdf
[2] https://jvi.asm.org/content/jvi/82/15/7264.full.pdf
[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7359522/
[4] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32380511/
[5] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp2005630