Grafismo Grafismo

COVID-19 e os desafios de um mundo mais solidário

11.04.2020

Por: Mell

por Fagner Carniel

Em “A guerra contra os fracos”, o jornalista Edwin Black relata em detalhes a assombrosa história da campanha de extermínio de populações vulneráveis empreendida nos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX. De acordo com o autor, ao atravessar o Atlântico, a ideologia eugênica de Francis Galton encontraria um terreno fértil naquele país. Nas mãos de muitos cientistas e legisladores do período, ela se converteria em uma ferramenta cruel de aniquilação de pessoas então consideradas como “inferiores” e “incapazes”. Assim, milhares foram impedidas pelas legislações vigentes de se casar ou de terem filhos e centenas foram internadas compulsoriamente em instituições psiquiátricas e submetidas a esterilização forçada. Apenas no contexto do pós-guerra, depois que os genocídios praticados pelo regime nazista alemão adquiriram ampla visibilidade, o movimento eugenista norte-americano começou a perder apoio, embora jamais tenha desaparecido.

Longe de representar um episódio remoto e infeliz da história moderna, atitudes que ecoam ideologias eugênicas persistem no cotidiano da maioria das sociedades por meio de variadas expressões como a xenofobia, o sexismo, o racismo, o machismo, a intolerância, a homofobia, o egoísmo, o colonialismo, o capacitismo. Tais manifestações povoam o imaginário social contemporâneo com efeitos duramente reais para todas as pessoas que habitam, a partir de seus corpos, as marcas de diferenças que são socialmente inferiorizadas. De Theodor Adorno a Judith Butler, passando por Hannah Arendt, Michel Foucault e Stuart Hall, inúmeras respostas intelectuais já foram formuladas pela filosofia ocidental para combater a perversidade destas formas de apagamento da dignidade e da diversidade humana. Mesmo assim, nos primeiros meses de 2020 acompanhamos com perplexidade a intensificação de práticas eugênicas que agora nos são apresentadas como uma função potencial da própria atividade médica.

Desde que a pandemia causada pelo COVID-19 trouxe à tona as fragilidades dos sistemas de saúde e das políticas governamentais em atender as populações infectadas ao redor do mundo, voltamos a nos deparar com a rotinização de discursos que nos constrangem com indagações a respeito de quem teria prioridade ao direito de viver. A questão repercute nos mais diversos contextos e latitudes em um momento de catástrofe humanitária que provoca transformações dramáticas no modo como vivemos nossas vidas, mas nem sempre permite a reflexão sobre o fato de que as suas consequências não afetam todas as pessoas da mesma maneira. Um exemplo das assimetrias e desigualdades acentuadas pelo surto do COVID-19 está no modo como temos nos relacionado com os critérios adotados para o tratamento das populações humanas diante da insuficiência de vagas em unidades de terapia intensiva (UTIs) e profissionais de saúde para responder as demandas crescentes no planeta.

Em países como o Brasil, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 2.156/2016, já havia estabelecido critérios de admissão e de alta em UTIs – e provavelmente não dedicamos atenção suficiente a documentos como este naquela época. Hoje em dia, descobrimos que a entidade que coordena a medicina brasileira, a despeito da atuação valiosa de tantos médicos, médicas e institutos de pesquisa no país, indicou que a prioridade hospitalar estivesse direcionada para salvar “pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico”. Embora o artigo 9 desta Resolução oriente que tais medidas devam ser adotadas sem nenhuma forma de discriminação, qualquer exame detalhado da situação do campo da saúde coletiva sinaliza os impactos que medidas como essas poderão gerar sobre a vida de grupos humanos minorizados. Em particular, aquele que representa “a maior minoria do mundo” para Organização Mundial da Saúde (OMS), o das pessoas com deficiência.

O tipo de biopolítica que os diferentes governos e atores públicos praticam está complemente visível neste momento histórico. Os poderes que organizam nossas vidas em tempos de pandemia escancaram o quão ingênuos ou insensíveis podemos ter sido diante da escalada das violências e da degradação da condição humana ao longo das últimas sete décadas. Trata-se de uma experiência cultural que demonstra quem nos tornamos enquanto coletividades, como constituímos nossas moralidades, quais habilidades e sensibilidades dispomos para nos defender deste surto infeccioso. Nesse sentido, sempre que alguém pergunta pelas vidas que merecem prioridade, está assumindo que certas pessoas supostamente poderão viver melhor ou mais plenamente do que outras. No entanto, o que significa sobreviver às custas da vida de outras pessoas? Esta não foi a primeira vez que a humanidade presenciou uma crise destas proporções e provavelmente não será a última. Ao seguir agindo com tamanha indiferença, não estaríamos colocando a própria existência de nossa espécie em risco?

O que talvez escape às “consciências humanitárias” que pretendem reduzir os “custos sociais” da saúde coletiva tornando determinados corpos matáveis é aquilo que a teoria social procura ensinar há quase um século: diante da dor, do sofrimento, da inferiorização e do extermínio de outras pessoas não há como vivermos melhor ou mais plenamente as vidas que ainda não perdemos. Afinal, a vida que possuímos só pode valer a pena se todas as outras vidas que nos cercam também o puderem, pois nós estamos conectados a elas em redes de cooperação, cuidado e de dependência que sustentam o mundo que habitamos e definem os horizontes daquilo que poderemos ou não nos tornar. Desse modo, se realmente desejamos construir sociedades mais justas e inclusivas, então, ao invés de contabilizar indivíduos descartáveis, me parece urgente começarmos a discutir em profundidade como seremos hábeis o suficiente para transformar esses ideais em um senso prático que assegure que todas as pessoas com as quais compomos nossas coletividades possam viver bem suas vidas.

Fagner Carniel é doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e atua junto ao Comitê de Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

lattes: http://lattes.cnpq.br/2143992966758829

Grafismo Grafismo

Compartilhe nas suas redes!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts
relacionados

Desenvolvimento de Vacinas: Da fase exploratória

Carta aberta à Prefeitura de Porto Alegre

Reabertura das Escolas?

Grafismo
Grafismo Grafismo