Isaac Schrarstzhaupt e Mellanie Fontes-Dutra
Nesse texto, vamos explorar um pouco o artigo “Evaluation of hydroxycloroquine or cloroquine for the prevention of COVID-19 (COPCOV): A double-blind, randomised, placebo-controlled trial” [link: https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1004428], publicado em setembro de 2024.
Vamos dividir o texto em tópicos, para que você possa pular para o que realmente o interessa, ou seguir o fluxo de leitura que estamos sugerindo!
No final da página, há um resumo para quem está sem tempo!
Artigos científicos, na área da saúde (mas não apenas nela) são uma ferramenta fundamental de comunicação de resultados de pesquisa e estudos clínicos. Com a publicação destes estudos, revisados por pares, podemos tomar decisões importantes sobre políticas públicas e sobre a disponibilidade de tratamentos à população. Todo artigo parte do que chamamos de “pergunta de pesquisa” e a partir dela é que definimos quais os métodos iremos usar para tentar responder esta pergunta!
Dependendo do tipo de estudo, que vamos chamar de “desenho de estudo” selecionado, esta hipótese gerada pela pergunta de pesquisa pode ser apenas levantada ou pode ser efetivamente testada. Um exemplo disso: estudos de prevalência, que medem a proporção de casos ou eventos que existem na população em um determinado momento, não conseguem testar as hipóteses, pois a prevalência não mede risco! Podemos descobrir uma possível associação entre dois acontecimentos, mas para testar estes acontecimentos usamos desenhos como os estudos de coorte ou os estudos experimentais.
Em um estudo experimental, os pesquisadores tentam buscar se um tratamento é eficaz para reduzir a incidência de um determinado desfecho, e tudo isso é escolhido “lá atrás” na hora de definir a pergunta de pesquisa. É muito importante que, escolhida a exposição e o desfecho primário, as análises sejam interpretadas a partir desta pergunta de pesquisa, e não de outras possíveis associações que encontramos ao longo do estudo! Mas por que isso? Vamos ver em um exemplo prático, na figura 1:
Figura 1: diagrama causal de exemplo de um estudo com variáveis de exposição, desfecho e fatores de risco
Imaginem que, como na figura acima, está definida a minha pergunta de pesquisa: “qual o impacto da exposição no desfecho?”. E aí eu tenho, no banco de dados, além das variáveis de exposição e desfecho, mais três variáveis, aqui chamadas de fator 1, fator 2 e fator 3. Estas variáveis também têm associação entre si e com o desfecho. Nessa pergunta acima, nenhum dos três fatores acaba sendo fator de confusão e eu posso analisar a associação entre a exposição e o desfecho sem me preocupar.
Agora, vamos supor que, ao analisar o banco de dados, eu achei uma associação muito interessante entre o fator 2 e o desfecho, mas essa não era minha pergunta de pesquisa original. Percebam que, ao mudar a exposição, o fator 1 (e a exposição, que é causa do fator 1) passa a ser uma variável de confusão, e a minha análise estatística DEVE mudar, como vemos na figura 2:
Figura 2: diagrama causal de exemplo de um estudo com variáveis de exposição, desfecho e fatores de risco, mudando a exposição e demonstrando possíveis confundidores
Por que estamos falando disso? Pois um estudo sempre aproveita as variáveis do banco de dados e mostra múltiplos resultados, para entendermos as possíveis associações, e temos de ter MUITO cuidado ao interpretar associações feitas a partir de desfechos secundários, ou variáveis secundárias.
Além disso, temos um outro ponto extremamente importante, que é a interpretação do resultado. Quando buscamos descobrir se há uma associação entre uma exposição e um desfecho, temos de fazer análises estatísticas, que nos dão o que chamamos de “medidas de associação”. Essas medidas variam dependendo do tipo de análise feita, que por sua vez varia dependendo de como as variáveis estão dispostas.
Uma destas medidas de associação se chama “Risco Relativo” ou “Risk Ratio”, cuja abreviação é RR. Quando calculamos incidências, ou seja, casos novos ao longo do tempo, esta é a medida de associação que obtemos. Ela busca verificar se existe excesso ou redução de risco em pessoas expostas, comparando com o risco em pessoas não expostas.
O cálculo do risco relativo é simples: é a razão entre a incidência nos expostos e a incidência nos não expostos! Como temos uma amostra de pessoas, teremos uma amostra de várias incidências, e esta distribuição de incidências gera uma distribuição de riscos relativos que, para serem interpretados, usam o que chamamos de “intervalo de confiança”.
Como estamos dividindo duas incidências, o valor que significa “nulo” não é zero, e sim um! Se eu tenho uma incidência de cinco casos por 1.000 no grupo exposto e uma incidência de cinco casos por 1.000 no grupo não exposto, ao dividir cinco por cinco eu tenho o valor um, ou seja: não há diferença entre os riscos! Juntando estas duas informações (de que o valor nulo é igual a um e de que os valores possuem um intervalo de confiança) já podemos começar a interpretar o resultado.
Se temos o resultado de um estudo que diz que o risco relativo é de 1,2, e o intervalo fica entre 1,1 e 1,8, o que isso quer dizer?
Que o risco do grupo exposto é 20% maior em relação ao grupo não exposto, sendo que pode ser de 10% a 80% maior. Qualquer valor dentro do intervalo de confiança é aceito, pois estamos, dentro da nossa amostra, tentando estimar um valor que existe na realidade, e este valor pode estar dentro deste intervalo.
Se o risco relativo for menor que um, aí a exposição tem efeito protetor! É importante entendermos isso, pois sabendo de tudo agora podemos ir para o último artigo publicado sobre uma provável eficácia da cloroquina na prevenção de casos de covid-19.
Quando vemos o artigo, o que buscamos?
O que temos?
A primeira coisa que vemos é que o valor nulo (um) está no intervalo de confiança. Isso significa que dentro dos valores possíveis, o nulo é um deles. Neste momento já não podemos dizer que este resultado é positivo! Um outro ponto desta análise é o que se chama de “valor de p” ou “p-valor” ou “p-value”, que é simplesmente a probabilidade daqueles resultados se darem pelo acaso. Quanto mais baixo este valor, menor a probabilidade daqueles resultados acontecerem por acaso. Neste caso, temos um valor de p de 0.051, ou seja, a probabilidade deste resultado se dar pelo acaso é baixa. E como o resultado inclui o valor nulo no intervalo de confiança, significa que não podemos dizer, estatisticamente, que ele é positivo ou protetor.
Este desfecho primário (covid-19 sintomática confirmada por laboratório) é formada de confirmação por teste PCR e confirmação por teste sorológico de dois tipos (serum e DBS).
O que temos de olhar, para interpretação, é o desfecho primário, cujo resultado inclui o valor nulo, como vemos na figura 3, retirada diretamente do estudo 1:
Figura 3: tabela do desfecho primário do artigo mencionando
Além disso, no próprio artigo, os autores mostram uma meta-análise que é uma análise de vários estudos, incluindo o seu próprio, que buscam o mesmo desfecho.
Percebam que, analisando individualmente cada estudo, 92% dos estudos incluem o valor nulo (um) dentro do intervalo de confiança, conforme vemos na figura 4:
Figura 4: meta-análise feita no artigo mencionado
E como interpretar, então, esta meta-análise? Para isso, precisamos entender que o princípio fundamental de uma meta-análise é o aumento do tamanho da amostra, e a inclusão de vários estudos ajuda a cumprir este princípio. Este aumento de tamanho busca aumentar a precisão do efeito de associação, e podemos ver que o resultado final possui, invariavelmente, um intervalo de confiança menor do que o dos estudos envolvidos, quando analisados individualmente. Cada estudo incluído em uma meta-análise possui um “peso”, que é atribuído pelos autores, com base em diversos métodos.
A meta-análise é uma ferramenta que, através deste princípio fundamental de aumento do tamanho da amostra, vem para adicionar, e não substituir, o efeito de estudos individuais. Com isso, queremos dizer que os resultados de meta-análises podem ser incorretos 2 se a atenção não for dada a pontos como a pergunta de pesquisa, o critério de elegibilidade, a identificação e seleção de estudos (que é sempre feita pelos autores), a coleta de dados, o risco de viés, entre tantos outros.
Ao mesmo tempo, os estudos utilizados em uma meta-análise (como esta em questão) invariavelmente possuem diferentes desfechos, diferentes dosagens e durações diferentes, e a soma destas diferenças podem gerar um resultado com significância estatística (onde o valor nulo está fora do intervalo de confiança), mesmo com todos os seus estudos não tendo esta significância.
No gráfico da meta-análise, chamado de “forest plot”, vemos que, abaixo de todos os estudos escolhidos, existe um ou mais “diamantes” que mostram o efeito comum. Vamos ver, na figura 5, uma meta-análise de estudos que analisaram o fator protetor da vacina BCG contra a tuberculose, no artigo “Effect of BCG vaccination against Mycobacterium tuberculosis infection in children: systematic review and meta-analysis” 3:
Figura 5: meta-análise de um estudo sobre vacina de BCG e tuberculose, demonstrando efeito protetivo da vacina
Conseguimos ver vários estudos cujo resultado individual já demonstrava este efeito protetor, sendo alguns com o intervalo de confiança englobando o valor nulo, e a meta-análise reduziu este intervalo de confiança reforçando o efeito protetor já demonstrado em vários estudos individuais.
Já neste estudo em questão, o diamante mostra um efeito com significância estatística 4 (vejam na figura 4 que o valor nulo não está incluso), o que é apontado pelos autores como a evidência de que o medicamento é eficaz. Levando em conta tudo o que já está no texto, podemos ver que, no mínimo, precisamos de mais análises aprofundadas para chegar a esta conclusão. Um dos pontos que reforça isto é o seguinte: este estudo em questão foi incluído em uma meta-análise pré especificada, de outro estudo anterior 5 que já produziu um efeito muito similar, conforme figura 6 abaixo:
Figura 6: meta-análise de estudos anteriores
Além disso, vários dos estudos incluídos nesta meta-análise e na anterior não conseguiram avançar no recrutamento da amostra planejada no estudo inicial, o que não necessariamente é um problema para cada estudo individual, mas deve ser levado em conta na escolha destes estudos para a meta-análise 6. Podemos ver na figura 7 abaixo os estudos que não conseguiram avançar no recrutamento com as setas da cor laranja, informadas pelos próprios autores da meta-análise anterior:
Figura 7: meta-análise anterior.
Um dos potenciais da meta-análise é o de resolver possíveis conflitos em estudos que apontam para lados diferentes, o que não é o caso nesta questão em particular.
6. Resumo para quem não tem tempo a perder
Os resultados do artigo “Evaluation of hydroxycloroquine or cloroquine for the prevention of COVID-19 (COPCOV): A double-blind, randomised, placebo-controlled trial” não devem ser extrapolados para contextos de “salvar vidas”, uma vez que os dados não apoiam redução de hospitalizações e mortalidade pelo uso de hidroxicloroquina/cloroquina.
A partir da análise das publicações incluídas na metanálise do artigo, a maioria dos trabalhos incluídos não são capazes de, estatisticamente, afirmar que o efeito dessa medicação é positivo ou protetor em relação à prevenção da Covid-19.
Infelizmente, o curso da hidroxicloroquina/cloroquina ao decorrer da pandemia da Covid-19 foi marcada por uma defesa para seu uso em larga escala, ainda que não houvesse dados suficientes apontando, principalmente, eficácia para desfechos da Covid-19. As desinformações vinculadas a esse medicamento suscitaram um grande engajamento da comunidade científica para a defesa de medidas preventivas efetivas e com dados robustos de segurança e eficácia/efetividade.
Se há culpados para tal rejeição do medicamento nesse contexto da Covid-19, certamente inclui-se nessa “lista” o próprio ecossistema da desinformação, o qual valeu-se de estudos com pouco rigor metodológico ou com problemas no desenho experimental e em suas análises/interpretações para indicar um medicamento que, infelizmente, não parece ter um efeito clínico significativo para o contexto da Covid-19.
Referências: