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A infeliz eterna polêmica da Cloroquina

16.07.2020

Por: Mell

Autoras: Jéssica Nazareno – instagram: @jessicanazareno e Mellanie F. Dutra (@mellziland)

Revisão – Jorge Alberto Araujo Insta @jorgealbertoaraujo Twitter @JorgeAraujo e Mirelle Araujo Casagrande Insta @mirellecomdoiseles e Márcio Bittencourt (@MBittencourtMD)

A Prática Clínica Baseada em Evidências (PEB) está pautada em eficácia cientificamente comprovada, experiência clínica, decisão e bem estar do paciente. E para garantir o sucesso do tratamento é  importante que o profissional da saúde tenha um olhar crítico sobre os estudos científicos que exploram possibilidades de intervenções por meio de uma avaliação científica adequada para  comparar a nova conduta encontrada com a que é considerada a melhor opção atual. O estudo deve ser realizado em uma amostra que represente a população1. 

A discussão sobre cloroquina na COVID-19 começou com um estudo realizado na França que sugeriu que o uso da Hidroxicloroquina associado à azitromicina poderia zerar a carga viral em apenas seis dias. A pesquisa contava com uma amostra de apenas 36 pacientes não era representativo, e não seguiu os critérios adequadosde uma pesquisa científica, apresentando falhas metodológicas graves e não corrigiveis. 2,3 

Para este tipo de pesquisa ter validade científica, é necessário que os participantes sejam escolhidos de forma aleatória (randomizada) e dispostos em grupos equivalentes (controlada). Um dos grupos recebendo o medicamento e outro um placebo. No caso da pesquisa divulgada o grupo usado como comparativo era de outra instituição e a idade dos participantes de cada um dos grupos eram diferentes, o que foi criticado pela comunidade científica 2. Essa nota levantou preocupações em outras revistas cujos estudos publicados utilizaram bancos de dados da Surgisphere, como foi o caso da New England Journal of Medicine (NEJM), em que um estudo foi publicado em Maio relatando que o uso de certos medicamentos para pressão arterial, incluindo inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA), não aumentou o risco de morte entre pacientes com COVID-19, como sugeriram alguns pesquisadores. A NEJM se pronunciou solicitando evidências para os autores de que os dados são confiáveis.

Para finalizar, um terceiro estudo usando dados do Surgisphere também chamou a atenção. Em um pré-print publicado em Abril, o fundador e CEO da Surgisphere, Sapan Desai, e co-autores concluem que a ivermectina, um medicamento antiparasitário, reduziu drasticamente a mortalidade em pacientes com COVID-19. Na América Latina, especialmente no Brasil onde a ivermectina está amplamente disponível, esse estudo levou funcionários do governo a autorizar o medicamento – embora com precauções – criando um aumento na demanda em vários países.

A instituição em questão é a Surgisphere, a qual forneceu dados de pacientes para outros dois artigos de alto nível do COVID-19, levando a The Lancet a fazer uma nota de Expressão de Preocupação, dizendo “uma auditoria independente da proveniência e validade dos dados foi encomendada pelos autores não afiliados à Surgisphere e está em andamento, com resultados esperados muito em breve”. Outro ponto é que os pesquisadores, aplicadores da experiência, sabiam quem eram os participantes que estavam sendo medicados com a cloroquina. 

É ideal que o estudo seja randomizado, controlado e duplo cego , ou seja, nem o médico e nem o paciente saibam quem recebeu o medicamento ou placebo. Isso faz com que sejam reduzidas as possibilidades de que o profissional de saúde trate os grupos de forma diferente e também permite maior controle sobre eventual efeito placebo (quando a crença de que se está sendo medicado apresenta efeitos psicológicos relacionados à cura) 2,4 

Aprovar um medicamento sem que os testes sejam realizados de forma apropriada e, ainda, sem que os parâmetros da experiência possam ser reproduzidos por outros cientistas em condições semelhantes, pode dar resultados falsos (positivos ou negativos) que podem comprometer a sua correta apreensão. Diversas pesquisas e relatos de casos, como o que foi publicado na Espanha, possuem as mesmas falhas descritas no artigo.

Varios ensaios clínicos robustos investigando o efeito da hidroxicloroquina, sozinha ou em combinação, também foram realizados e finalizados, apontando ausência de efeitos benéficos, e até conferindo riscos de seu uso a pacientes com COVID-19. É o caso do Recovery 6, em que um grupo de 1542 pacientes hospitalizados com COVID-19 foram tratados com hidroxicloroquina, 25,7% desse grupo morreram após 28 dias, em comparação com 23,5% em um grupo de 3132 pacientes que receberam apenas tratamento padrão. Uma meta-análise de 24 estudos clínicos randomizados publicados nos Annals of Internal Medicine aponta que as evidências são insuficientes e muitas vezes conflitantes sobre os benefícios e malefícios do uso da hidroxicloroquina ou cloroquina no tratamento do COVID-19 7. Outro estudo publicado por David Boulware, da Universidade de Minnesota, Twin Cities, e colaboradores utilizaram um protocolo de profilaxia pós-exposição (PEP), em que os pesquisadores enviaram hidroxicloroquina ou um placebo por correio para 821 pessoas que estavam em contato próximo com um paciente COVID-19 por mais de 10 minutos, sem proteção adequada. O artigo publicado no The New England Journal of Medicine indica que 12% das pessoas que tomaram o medicamento desenvolveram sintomas de COVID-19, contra 14% em um grupo placebo, uma diferença que não foi estatisticamente significativa, por tanto, não comprovado um efeito benéfico nessa situação 8. Outro estudo espanhol analisou mais de 2300 pessoas expostas ao vírus, randomizadas para receberem ou a hidroxicloroquina ou os cuidados usuais. Os autores apontaram que não houve diferença significativa entre o número de pessoas em cada grupo que desenvolveu o COVID-19 9. Essas observações estão bem elaboradas e foram retiradas e adaptadas da ScienceMag 10 

Recentemente, a Henry Ford Health System publicou um estudo 11 na International Journal of Infectious Diseases, mostrando uma análise retrospectiva em larga escala de 2.541 pacientes hospitalizados entre 10 de março e 2 de maio de 2020 nos seis hospitais do sistema. O estudo constatou que 13% dos tratados apenas com hidroxicloroquina morreram em comparação com 26,4% não tratados com hidroxicloroquina, indicando um possível resultado benéfico do tratamento com hidroxicloroquina para a COVID-19. No entanto, segundo críticas da comunidade acadêmica, o estudo tem pontos críticos quanto a aleatorização dos pacientes que receberam hidroxicloroquina: esses também tiveram maior probabilidade de obter esteróides, o que parece ajudar pacientes muito doentes com Covid-19. Segundo a reportagem 12 provavelmente, isso influenciou o achado central do estudo de Henry Ford: as taxas de mortalidade foram 50% menores entre os pacientes nos hospitais tratados com hidroxicloroquina. Outro ponto central é a natureza do estudo ser observacional, o qual tem muita fragilidade em força na evidência, não podendo ser usados ​​para determinar se um medicamento é eficaz. Os estudos observacionais são freqüentemente usados como um “passo anterior” aos ensaios clínicos ranzomizados, auxiliando na decisão de quais idéias testar em estudos clínicos randomizados robustos, para garantir que os resultados sejam traduzidos para o mundo real e para detectar efeitos colaterais, segundo a reportagem. Há outras diversas críticas mais específicas sobre a forma que esse estudo da Henry Ford foi conduzido, porém é necessário pontuar que muitos estudos clínicos randomizados e de ponta foram realizados e finalizados, apontando evidências robustas de que não foi possível observar efeito benéfico da hidroxicloroquina, sozinha ou combinada, para pacientes com COVID-19. Finalmente, um estudo clínico randomizado investigando os efeitos do tratamento com hidroxicloroquina em adultos não hospitalizados com COVID-19 demonstrou que a hidroxicloroquina não reduziu a gravidade dos sintomas em pacientes ambulatoriais com COVID-19 leve e precoce 13. Ainda, os efeitos adversos da medicação foram observados em 43% (92 de 212) dos participantes que receberam hidroxicloroquina versus 22% (46 de 211) que receberam placebo, segundo o estudo.  

Temos de ter muita cautela e atenção ao ler estudos sobre esse tema, não exclusivamente para a hidroxicloroquina. Outros remédios candidatos estão sendo atualmente testados e exigem igual rigor e senso crítico na análise de seus dados. No entanto, estamos perdendo um tempo precioso em tentar levantar evidências do benefício da hidroxicloroquina tendo um conjunto robusto de evidências que já apontam que ela não tem esse benefício desejado. E poderíamos estar aplicando esses esforços em terapias mais promissoras e que seguem uma robustez e fluxo determinado pelo método científico para testar hipóteses. Quanto mais cedo pararmos de falar na hidroxicloroquina, mais esforços poderemos dedicar para estratégias que realmente podem fazer a diferença no quadro clínico dos pacientes com COVID-19.

Referências: 

(1) BROEIRO, Paula. Prática baseada em evidência e seus limites. Rev Port Med Geral Fam, Lisboa , v. 31, n. 4, p. 238-240, ago. 2015 . 

(2) SCIENCEMAGORG. A mysterioious company’s Coronavírus papers in top medical journals may be unraveling. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2020/06/mysterious-company-s-coronavirus-papers-top-medical-journals-may-be-unraveling. Acesso em: 10 jul 2020. 

(3)SCIENCEMAGORG. Who launches global megatrial four most promising Coronavirus treatments. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2020/03/who-launches-global-megatrial-four-most-promising-coronavirus-treatments. Acesso em: 10 jul 2020. 

(4) Siqueira AL, Tibúrcio JD. Estatística na área da saúde: conceitos, metodologia, aplicações e prática computacional. Belo Horizonte: Coopmed, 2011 

(5) A short therapeutic regimen based on hydroxychloroquine plus azithromycin for the treatment of COVID-19 in patients with moderate disease. A strategy associated with a reduction in hospital admissions and complications. MedRxiv. Publicada em 12 de junho de 2020. https://doi.org/10.1101/2020.06.10.20101105 . Pre-Print. 

(6) https://www.recoverytrial.net/files/hcq-recovery-statement-050620-final-002.pdf

(7) https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M20-2496

(8) https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2016638

(9) https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04304053

(10) https://www.sciencemag.org/news/2020/06/three-big-studies-dim-hopes-hydroxychloroquine-can-treat-or-prevent-covid-19

(11) https://t.co/FenWhVIYLm?amp=1

(12) https://www.statnews.com/2020/07/08/a-flawed-covid-19-study-gets-the-white-houses-attention-and-the-fda-may-pay-the-price/

(13) https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M20-4207#.XxCg1XPdhvo.twitter

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